quinta-feira, 25 de junho de 2009

Visita



Visita
Lucia Sauerbronn
Não gosto de seus beijos molhados, mas a festa que ela me faz vale a pena. Me abraça apertado (sinto o cheiro de seus cabelos ralinhos), se afasta, segura o rosto entre as mãos e sorri: não acredita como eu cresci. Diz que fiquei bonita como ela imaginava. Quando reclamo que a idade não melhorou o nariz, ela, fingindo mágoa, aponta a própria foto amarelada. Rimos juntas e ouço que semente não cai longe do pé.
São tantas perguntas, o tempo é curto para respostas. Ela acompanha com os olhos da imaginação o relato que faço de tudo: a casa, as crianças, o trabalho. Faz frio. Ela se acomoda na cadeira de balanço. Ajeito o xale sobre as pernas magras e me aconchego em seu colo. Naquele abraço, tenho dez anos, seu coração ainda bate forte e compassado. Desejo ficar assim, presa ao útero do tempo, mas ela não contém a agitação: levanta, ajeita a toalhinha de crochê do aparador, percorre a sala com o olhar, revirando a memória em busca do melhor agrado. Vai em direção ao quarto e me estende o volume. Reconheço cada marca nas páginas do livro ilustrado.
Entretida, não percebo quando ela sai. Observo o cenário que o tempo não modificou: a cristaleira com os bichos de vidro que eram meu zoológico, os copos azuis em que eu tomava chocolate quente. Ao pé de Nossa Senhora, o terço de contas gigantes. Puxo os pinhões do relógio: são quase três horas. Percebo o sorriso que vigia a porta da cozinha, mas não me volto, espero o cuco cantar. Enxugo, com a manga da blusa, as gotinhas de vapor na janela. Por trás da cortina, o vento balança os galhos do salgueiro-chorão onde eu me escondia nas tardes quentes de janeiro.
- Por que sua mãe não veio? - ela pergunta desaparecendo na despensa. Sobre a pia, a velha lata de farinha, o açúcar, a peneira e os ovos lembram uma natureza-morta. Invento qualquer desculpa, mas ela já não ouve: agora agita com vigor o batedor de ovos contra as claras que, sem resistência, espumam. Ajudo com a gemada, misturando açúcar àquelas patacas quase vermelhas que as galinhas produzem livres no quintal. Besunto manteiga na forma, espalho a farinha. Ela despeja a massa amarela e grossa, com a colher de pau firme entre seus dedos nodosos.
O bule de ágata vai para cima do fogão a lenha, quente como se estivesse eternamente à minha espera. Estendo a toalha xadrez sobre a mesa e ajeito as xícaras. Saio de mansinho porta afora e me lanço pelo corredor lateral; corro batendo com força os pés, reconhecendo o som do canos que se alongam em direção à rua. Furo polegar e indicador nos espinhos da roseira. Preparo o buquezinho e ajeito as hastes entre ramos de pinheiro. Tenho nas mãos o arco-íris. Nunca me pareceu estranho que rosas azuis brotassem naquele jardim. Escondo as mãos nas costas, persigo o cheiro de bolo e levito de volta à cozinha. Com o vidro de geléia na mão ela me olha, censurando. Trocamos sorrisos cúmplices: sou a única com autorização para colher flores daquele jardim.
Corro lhe dar um beijo. Ela não consegue disfarçar a emoção em seus olhos marcados e se vira para pegar no armário o pequeno vaso de porcelana, que enche e enfeita com o buquê.
O leite chia na chapa quente. A espuma grossa transborda a leiteira que ela ergue, sopra e reclama:
- A gente vigia, vigia, e basta piscar.
Do forno tira o bolo inchado, a massa estourando em flor dourada no centro. Com ajuda da peneira, salpica açúcar perfumado de baunilha. Lambuzo as fatias grossas com manteiga, que desaparece nos furinhos fumegantes. O bolo e o café com leite afastam o frio e a tristeza. Ela recolhe a louça, ajudo a lavar e me despeço.
Prometo voltar. Ela sorri, compreendendo, e desaparece na bruma, entre os escombros da casa, para onde um sonho de traidoras memórias me transportou sem avisar.
Crônica publicada na Coop Revista - Junho / 2008

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