quinta-feira, 25 de junho de 2009

O pior cego é aquele que não quer admitir



O pior cego é aquele que não quer admitir
Lucia Sauerbronn
Com o perdão da palavra, sou presbíope. Assumida, mas não conformada. Antes que alguém pense que se trata de uma nova religião, saiba que, se você já não consegue enxergar a data de validade do iogurte, a sua data de validade é que está vencida. Bem-vindo ao clube do time da vista cansada.
No começo, bem que relutei. Quando se tornou impossível encontrar a linha pontilhada do pacotinho de biscoitos, recorri aos colírios. Quando passei a usar agulhas cada vez mais grossas para conseguir enfiar a linha de costura, fiz compressas de água boricada. Quando meus braços se tornaram curtos para enxergar o texto da bula de remédio, tomei anticoncepcional pensando que era analgésico. Fui ao oculista. Ele procurou me acalmar: 62% da humanidade acima dos 40 anos não vive mais sem a companhia de um par de óculos.
Para quem descobriu a miopia na primeira infância, os óculos funcionam como uma extensão do corpo. Antes de fazer, por ordem médica, uma cirurgia para corrigir seus oito graus, meu marido se tornou tão dependente que colocava os óculos até para desligar o despertador. Apesar de voltar a enxergar o mundo livre, leve, solto e colorido, ele sentiu muita falta do velho companheiro de infortúnio.
Já eu, como diz a música, não nasci de óculos. E, como junto com a visão vai-se embora a memória, nunca sei onde deixei o dito-cujo. Até tentei comprar uma daquelas correntinhas para pendurá-los. Quando me vi com a aparência da velha bibliotecária do grupo escolar, guardei na gaveta para sempre. Só que, sem óculos, não consigo encontrar os óculos. Apelei então para os descartáveis. Tenho um em cada canto: na sala, no quarto, no escritório, no banheiro, no carro. O que nem sempre funciona. Enxergo bem de longe, o que torna impossível dirigir de óculos, por exemplo. Para ler o endereço no papel, ponho os óculos. Para olhar o trajeto, tiro. Nesse põe e tira, bati o carro mais de uma vez.
E no banheiro, então? Depois do banho, seco o cabelo. O banheiro se enche de vapor. As lentes embaçam, é impossível me maquilar. Para pintar os olhos, entorto a armação para enxergar o olho direito com o esquerdo. E vice-versa. Tirar a sobrancelha é uma tortura. Termino com as pálpebras picadas. Comprei um daqueles espelhos que aumentam a imagem. Foi pior: passei a enxergar todas as minhas rugas.
Usar óculos pôs fim aos jantares românticos. Presbiopia não combina com luz de velas. Antigamente, os restaurantes tinham dois tipos de cardápio. Um para os homens, outro para as mulheres, sem o preço. Hoje, que as mulheres estão emancipadas e ganham o próprio dinheiro, a gentileza parou de fazer sentido. Melhor seria fazer um cardápio com letras garrafais para presbíopes. Escolho o que vou comer sob o conforto da luz do banheiro.
Na hora de fazer compras, o sacrifício não é menor. Não dá para dar aquela disfarçada na hora de ver o preço da roupa. Escolho o vestido sem óculos. Para ler a etiqueta, ponho os óculos. Tiro os óculos para experimentar. Ponho os óculos para conferir a conta.
E o cartão de crédito? Deveria ser do tamanho de um envelope. Tenho treinado para reconhecer os números em relevo com a ponta dos dedos. No caixa eletrônico, sou um perigo. Para não esquecer a senha do banco, que mudo de tempos em tempos por segurança, carrego um cartãozinho com os números bem grandes. Assim enxergo. O próximo da fila também.
Como sou desajeitada e vivo derrubando o celular, eles não duram seis meses. Os modelos, cada vez menores, têm teclados diferentes. Ao invés do send, aperto o botão da máquina fotográfica. Meu pé já foi clicado tantas vezes que dá para fazer uma exposição das fotos. A indústria ainda não descobriu o grande mercado dos presbíopes. Meu sonho de consumo é um celular com teclas e números enormes, coloridos. O mesmo vale para aqueles ridículos botõezinhos do controle remoto.
O mundo digital, por sinal, não está preparado para nós. Quem projeta computadores certamente não chegou aos 40. A uma distância de um metro da tela, sem óculos, as letras dançam, se confundem. Com os óculos, ler à mesma distância dá um enjôo danado. O jeito foi o oculista receitar um par de lentes com a metade do grau para trabalhar no computador. A dificuldade começa quando tenho de ler minhas anotações. Ponho os óculos para ler o papel, troco de óculos para ler a tela. Levo o dobro do tempo para terminar um texto.
O oculista, cansado das minhas reclamações, sugeriu uma alternativa: usar num dos olhos lente de contato para perto, no outro, para longe. Meu cérebro ficou aparvalhado e reagiu com uma crise de labirintite.
Vivo na esperança de surgir uma cirurgia para presbiopia. Está difícil. Presbiopia é o enfraquecimento muscular do cristalino, um recurso da natureza para colocar nossos olhos no foco, como uma máquina fotográfica. Tentei fazer musculação ocular: olhar repetidamente para um livro e para o horizonte. Consegui uma tremenda dor de cabeça. A vista ficou mais cansada.
Cada vez que volto ao oculista ele aumenta o grau. Melhora, mas não resolve. Continuo a ter dificuldade para ler bula de remédio. Mas arrumei um jeito de não tomar viagra achando que é calmante: além dos óculos, conto com a providencial ajuda de uma potente lupa.
Crônica publicada na Coop Revista - Novembro / 2007

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