quarta-feira, 24 de junho de 2009

PARE O MUNDO QUE EU QUERO DESCER



PARE O MUNDO QUE EU QUERO DESCER
Lucia Sauerbronn
Troco de roupa falando ao telefone, escovo os dentes calçando os sapatos, tomo café lendo o jornal e termino a maquilagem enquanto espero o semáforo abrir. Fujo do trânsito por ruas alternativas escolhendo caminhos entre os buracos. De longe, distingo uma vaga. Suspiro. O carro da frente chega antes. Para conseguir estacionar, preciso dar três voltas no quarteirão.
No trabalho, falo ao telefone lendo e-mails, atendo pessoas guardando pastas, rabisco anotações para não esquecer de fazer o que deveria ter feito ontem. Penso em meia dúzia de coisas ao mesmo tempo, falo três de uma vez só, atropelo os passos, esbarro nas cadeiras e derrubo café nos documentos que deveria assinar.
Termino o relatório que levei horas para fazer. Fecho a tela sem salvar o trabalho. Escarafuncho, desesperada, o computador, tentando restaurar o texto perdido. Inútil. Recomeço do zero.
Saio voando para casa. Estou atrasada, é claro. Por isso, o almoço vai sair mais tarde. A empregada está com problemas pessoais e pede ajuda. Fico pouco em casa, é ela quem resolve tudo, me sinto em dívida. Dou atenção, procuro ajudar. Depois do papo, mais aliviada, ela emenda: a despensa está vazia, é hora de fazer as compras. E me estende a lista.
Nem bem sento à mesa, o telefone toca. Meu marido reclama: os amigos sabem que só me encontram em casa nesses poucos minutos em que deveria estar com ele. Engulo o almoço frio e a cara feia da família, que já está na sobremesa.
Meu pai protesta: há uma semana não apareço. Telefono todos os dias, culpa de filha é de doer o coração e tirar o sono. Quem sabe, amanhã, depois do trabalho...
Ainda bem que tenho a tarde pela frente. Ah, as belas tardes de outono, com sol e brisa gostosa, tardes tão boas para andar a pé, olhar as pessoas, chutar pedras no caminho. Mas à tarde tem reunião no escritório, o projeto que precisa ser entregue hoje, o texto que ainda não concluí, as contas para pagar.
Ah!, e o pintor que vai fazer o orçamento do serviço lá de casa, não posso esquecer. Falando em esquecer, não é hoje o aniversário da Sueli? Preciso mandar flores. Não, melhor comprar um presente, dar um pulo até lá, levar um abraço. Mas hoje à noite tem reunião de condomínio, como é que fui aceitar essa incumbência? No mesmo horário da aula de francês, mon Dieu, c'est terrible!, a terceira falta deste mês. E eu que pensava chegar em casa cedo e terminar de ler aquele livro.
Não sei o que deu nas cabeças da mulheres, trocar a doce vidinha doméstica por essa alucinação toda. Às vezes, sinto vontade de jogar tudo para o alto e curtir o lar, doce lar. Ter tempo de olhar vitrines, ir ao cabeleireiro. Mandar tudo às favas e pegar um cineminha no meio da semana.
Mas agora é tarde. A gente assume compromissos... Falando nisso, não sei por que estou aqui divagando, essa crônica deveria ter sido entregue ontem.
À beira de enlouquecer, acho que seria mais fácil se o dia tivesse 36 horas. Mas não acredito que fosse adiantar. Tenho mania de querer abraçar o mundo. Iria pedir meia hora a mais.
Nessa neurose de querer me superar, não perdôo, busco a perfeição: um dia ainda chego antes de mim.
Crônica publicada na Coop Revista - Junho / 2007

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