quinta-feira, 25 de junho de 2009

Da janela



Da janela
Lucia Sauerbronn
Todas as manhãs, quando passo, ela está na janela. O edifício fica numa rua central e dá de frente para outra, perpendicular. Além dos cem metros que seus olhos alcançam à direita e dos outros cem, à esquerda, ela enxerga um corredor de lojas, consultórios e estacionamentos. Observa o movimento de automóveis e de pedestres, uns carregados de sacolas, outros trazendo uma criança pela mão. Mesmo assim, acho perverso dizer que ela desfruta, do alto de sua janela, de uma vista privilegiada.
Fossem outros os tempos, talvez aquela janela mostrasse a alegria dos quintais cercados, com crianças observando as formigas ou escavando a terra atrás de minhocas assustadas. Nesses quintais haveria sempre alguém brincando de amarelinha, esconde-esconde, pega-pega, um menino trepado na árvore e uma menina aparando na saia as mangas que o menino – seu primeiro e secreto amor – atirasse lá de cima. Seria capaz de ouvir uma dona de casa implicar com a pelada de rua dos meninos, cuja bola sujasse os lençóis branquinhos, que ela recolheria caso o céu anunciasse temporal.
De manhãzinha seu despertador seria um galo cantando ao longe. E nos dias de sol, veria o alvoroço dos pássaros pintando o espaço em revoada, a sobrevoar os telhados atrás do cheiro das flores e frutas. Quem sabe, teria a sorte de um casal de joão-de-barro escolher sua árvore para construir o ninho, ou colibris cativos dos gerânios de sua janela. Quando a noite caísse, acertaria o relógio para as seis, ao som da ave-maria.
Mas não. Daquele quadrado de vidro, a cena que ela descortina é bem diferente. Nos dias de verão, um clarão tinge o horizonte de vermelho e o sol se levanta de mansinho. A bola sobe leve entre os edifícios, iluminando a silhueta de metal da floresta de antenas, que parecem homenzinhos de braços abertos. Só então ele se dá por completo: redondo, gordo, liso e de raios múltiplos, lavando de amarelo as cores empoeiradas das fachadas, onde as venezianas começam a se abrir aos pares, ou a se levantar solitárias. A bruma se afasta, tornando clara a cidade que acorda.
Lá embaixo, automóveis e pessoas parecem bichinhos: vêm e vão em ritmo ainda lento, arrastando-se pelas ruas e calçadas. Adolescentes seguem para a escola, auxiliares de escritório e comerciários passam consultando o relógio. Poucos são os que ainda se espreguiçam na cama quente. Nas ruas ninguém tem nome e a mulher se entristece: do alto de sua janela, ela também não tem...
Logo os cordões de gente engrossam. Agora todos têm pressa: há alguém querendo um cinto, um vestido, um documento; há um sapato a ser consertado, uma dor de dentes, um relógio quebrado, um homem precisando de um trago. Há uma mulher preocupada com o almoço, uma criança que pede sorvete, um homem sisudo, um guarda de trânsito tentando organizar a confusão. Há alguém atrasado e outro, irritado, que espera. Há uma moça que perde a esperança num leito de hospital. No quarto ao lado, alguém ergue um brinde ao bebê recente. Num andaime, o rapaz assenta o tijolo pensando ser semente; outro martela um batente. É preciso produzir, as buzinas se impacientam, o ronco dos motores abafam os suspiros.
Surpreendo a mulher na janela com o dedo nos ouvidos, tentando, quem sabe, sentir o som ritmado do próprio coração. Eu a imagino buscando o silêncio numa sala vazia: os móveis limpos, o chão encerado, a toalha de crochê sobre o aparador, a samambaia que pende do vaso, o casal de cisnes de vidro na mesa lateral. Vejo que ela não me vê, e não a culpo: sou apenas mais um dos pontinhos que ziguezagueiam cá embaixo. Apenas lamento que ela não seja capaz de ouvir meu bom dia envergonhado.
Crônica publicada na Coop Revista - Agosto / 2008

Nenhum comentário:

Postar um comentário