terça-feira, 23 de março de 2010

Cheirinho de Amor



Cheirinho de amor
Lucia Sauerbronn
Fico na maior saia justa quando digo muito prazer a uma pessoa a quem já fui apresentada. Passo por mal educada. Peço perdão, embora não tenha culpa. É que minha memória visual é péssima. Em compensação, tenho nariz de cão farejador. Sou capaz de lembrar de alguém por um rastro de perfume ou sabonete, se bem que isso não ajude no relacionamento social. Até pensei em trocar o tradicional beijo de cumprimento por uma fungada. Só não sei como as pessoas reagiriam à novidade.
Se os olhos me falham, o nariz é capaz de me transportar às lembranças mais distantes. Sabonete Phebo, creme dental Kolynos e lavanda de alfazema trazem de volta a sensação do beijo de minha mãe, quando me punha para dormir em lençóis de algodão engomados e branqueados de anil. Minhas lembranças de infância são sempre assim, impregnadas de cheiros de Toddy gelado, Grapete, bala de framboesa, drops Dulcora, caderno novo, plástico de encapar, goma arábica, giz de cera, lápis de cor, grafite, borracha, piso de madeira encerado, a mistura mofo e cigarro de velhos cinemas.
Meu nariz deve ter o dobro dos cinco milhões de células receptoras de um nariz normal e parece ser capaz de reconhecer outros tantos milhões de odores diferentes. Para mim, os cheiros guardam sempre outros cheiros. De manhãzinha, o mato tem aroma fresco e suave. Sob o sol forte, se torna doce e intenso. Mas muda totalmente na garoa do inverno, e é diferente sob a chuva de verão.
Antigamente, eu gostava de caminhar na cidade de olhos fechados. Brincava de identificar, pelo cheiro, onde ficavam dentista, açougue, loja de tecidos, hospital, jornaleiro. Casas e terrenos baldios exalavam perfume de rosas, café, mamona, estrume, terra molhada, feijão temperado, horta, cigarro. Hoje, meu olfato embotou. Nas ruas, tudo o que sinto é o ar sufocante e impregnado de dióxido de carbono. Ao invés do nariz, tenho que apelar para o GPS.
Dá para viver sem enxergar ou ouvir. A vida pode ficar sem graça, mas ninguém morre se não tiver tato ou paladar. Posso estar exagerando, mas aposto que o nariz é o grande responsável pela preservação do reino animal no planeta. Não digo isso por sua função mais óbvia, que é respirar. Sem olfato, não seria possível, por exemplo, saber se um alimento está bom ou estragado sem precisar experimentar. E só de experimentar, comida estragada é capaz de matar. O ser humano parece ter esquecido disso, mas o cheiro tem outra função importante.
Segundo os cientistas, o amor não começa quando os olhares se encontram, mas quando um aspira os odores do outro, que emanam feromônios, os hormônios do corpo. Misturados a outros próprios, como suor e hálito, eles desencadeiam a atração e o desejo sexual. Quando as pessoas se beijam, aproximam os narizes e aspiram a química do outro. É assim que escolhem com quem querem conviver. E assim descobrem se o que vai rolar é namoro ou amizade.
Fiquei preocupada. Eu mesma abuso de perfumes, cremes, desodorantes, xampus, pasta de dentes, resultando numa mistura de baunilha, chocolate, limão, maçã e hortelã. Se não tomar cuidado, meu marido pode me confundir com um prato de sobremesa.
Se os cientistas estiverem certos, vai ser cada vez mais difícil encontrar sua alma gêmea. Bem fazem os cães, que confiam mais no focinho do que na aparência. Quando se encontram, vão logo se cheirando para ver se o caso é de mostrar os dentes ou abanar o rabo. Sábios animais, que se reconhecem e se atraem sexualmente pelo cheiro que exalam.
Só que, agora, nem os cães estão livres da praga do cheiro que não é seu. Eles vão ao pet shop, usam xampus, condicionadores, perfumes. Daqui a pouco nem eles serão mais capazes de distinguir macho de cadela. Desse jeito, para ter filhos ou filhotes, vamos todos ter de fazer inseminação artificial...
Crônica publicada na Coop Revista - Março / 2.010