quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Amor de quatro patas




Foi difícil convencer o pessoal lá de casa, mas bati pé. Eu queria um cachorro. Já tinha até escolhido o nome: Milou. Como o do Tim Tim, jornalista aventureiro das histórias em quadrinhos. Alguém lembrou que o companheiro do meu herói era macho, mas não liguei. Quando cheguei ao canil e falei o nome diante da ninhada, ela correu lamber minha mão e me adotou imediatamente. Aquela era uma autêntica Milou.
Esperei desmamar. Fui buscar um mês depois e levei um susto. Estava magra e pelada, por causa de uma alergia. Não a reconheci, mas ela, sim. Pulou no meu colo e me encheu de beijinhos. Algumas semanas, muitas loções e vitaminas depois, amarrei nos fiapos do topete o primeiro lacinho que seria sua marca registrada.
Desde cedo, a danada mostrou que tinha personalidade. Dava sempre um jeito de conseguir o que queria. Meu marido tinha sido claro: eu poderia manter a cadelinha no apartamento, desde que ficasse dentro dos limites da área de serviço.
Ajeitei seu cestinho ao lado da máquina de lavar. No dia seguinte, passou a ocupar o tapete da cozinha. Uma semana depois, já se refestelava no sofá da sala. Numa noite fria, acordamos com aquela bolinha de pelos aninhada aos nossos pés. Meu marido deu uma bronca. Ela não se abalou: passou a esperar ele dormir para se ajeitar entre os lençóis. Pulava da cama ao primeiro sinal do despertador. Quando ferrava no sono e perdia a hora, era sempre o mesmo teatro. Ele fingia ficar bravo, ela fingia estar arrependida. Apoiava a cabeça nas patinhas cruzadas e olhava de lado, como criança pequena quando faz arte.
Era uma lady. Tomava banho uma vez por semana, sentava na poltrona para assistir TV, engolia remédio e aguentava injeção sem reclamar. Recebia as visitas na porta, passeava sem coleira, ficava sozinha na entrada da padaria enquanto fazíamos compras. Se íamos ao teatro ou ao restaurante, esperava no carro, sem latir nem fazer bagunça. Acho que ela nunca desconfiou que não era gente. Na feira, nas ruas do bairro, entre os conhecidos, fazia o maior sucesso. Todos queriam um filhote seu. Dos sete que teve, seis estão com amigos. Se contarmos os descendentes, deve haver uma centena de Milouzinhas espalhadas por aí. Até meu pai, que nunca gostou de cachorro, se derretia por ela e lhe preparava bifinhos fritos com cebola. Quando nós viajávamos, eram companheiros de solidão. Quem tem um cão por perto nunca se sente sozinho.
Milou veio para ocupar o enorme vazio que os filhos deixaram quando foram cuidar da própria vida. Foi uma época em que meu marido e eu brigamos muito. Quando percebia um de nós triste, ela encostava a cabeça no colo e suspirava, como quem dá o ombro para consolar. Pensamos em nos separar. Meu marido abriria mão de tudo, desde que levasse a cachorra. Alegava que era a única que ficava feliz quando ele voltava para casa.
Conforme a idade vai chegando, a gente pensa mais na vida, fica com o coração mole, acha que não vale a pena se chatear por pequenas coisas, discutir por bobagem. Reconciliamos. Passamos a nos perdoar mais. Entre algumas brigas, chantagens emocionais e muitos xixis no tapete, vivemos os três felizes. Achamos que seria para sempre.
Cães não duram tanto. Ficou velhinha, doente. Apesar das muitas cirurgias, o mal continuava a crescer dentro dela. Ainda fazia festa e corria a buscar a bola quando chegávamos. Mas logo perdia o fôlego e ia deitar no seu cantinho. A Conceição, que trabalha conosco e de quem ficou grande amiga, se desdobrava para fazer seus pratos prediletos. Ela rejeitava. Já não queria se alimentar.
Alguém sugeriu sacrificá-la. Fui covarde. Deixei que seus últimos momentos fossem sofridos, os remédios não faziam mais efeito. Ela já quase não reagia. Apesar da respiração ofegante e do coração fraquinho, ronronou de prazer como um gato enquanto acariciava sua orelha na última noite em que a velei. Esperou eu adormecer para partir.
Ajeitamos seu corpo, vazio de lambidas e carinhos, numa caixa branca, junto com a almofada e os brinquedos prediletos. Enterramos ao pé do salgueiro-chorão, que plantei num gramado em homenagem à lembrança do meu pai.
A casa está escura e silenciosa. Sei que há muitas histórias tristes nesse mundo. Guerras, doenças, humilhações, crianças sem teto, comida e afeto. Parece até ridículo sentirmos tanto a sua ausência.
Mas a relação com um cão é bem menos complicada do que entre seres humanos. Mesmo com nossos filhos e melhores amigos, é preciso ter cuidado com as palavras, passar por cima de inquietudes como inveja, ciúme e ingratidão. Temos de suportar injustiças para não nos sentir mais sós do que de fato estamos. Entre humanos, é difícil não magoar nem ser magoado.
Já um cão não guarda rancores nem ressentimentos. Perdoa nossas piores falhas, até mesmo as de caráter, porque não faz julgamentos. O cão é fiel a quem ama. E esse é o único amor incondicional.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

O barato dos livros de auto-ajuda



O barato dos livros de auto-ajuda
Lucia Sauerbronn
Depois que descobri os livros de auto-ajuda parei de fazer análise e me entupir de pílulas contra a insônia. Esses manuais são um santo remédio para crises existenciais, angústia, rejeição, timidez e medo. Não é à toa que andam vendendo mais do que Viagra. Eles ensinam a usar o poder da mente para alcançar sucesso, dinheiro, felicidade, fazer amigos, tornar-se uma fera na cama, conquistar um grande amor, viver um casamento perfeito, criar filhos inteligentes, conviver com a sogra e ensinar o cachorro a parar de fazer xixi no tapete.
Confesso que nunca fui de acreditar em fórmulas mágicas. Mas, depois descobri o segredo, passei a me concentrar fortemente nos meus desejos. Minha vida mudou completamente. Não tinha idéia do poder do pensamento positivo. Por exemplo: mesmo dirigindo atrasada, agora não me abalo diante de um farol vermelho. Fixo o pensamento na cor verde e segundos depois, o sinal se abre. É impressionante!
Esses autores iluminados escrevem cada coisa que, confesso, me tornei dependente. Aprendi a controlar o stress, combater a depressão, a tristeza, a insônia, a solidão, o mau-humor. Não passo um dia sem visitar a livraria. Fico horas na sessão de auto-ajuda conferindo os lançamentos. Para cada problema há uma dezena de livros apontando a solução.
Minha auto-estima, por exemplo. Melhorou muito com a neurolinguística. Quando olho no espelho e acho que envelheci, repito bem alto que estou cada dia mais jovem e mais bonita. Até meus cabelos brancos desapareceram, depois que troquei pensamentos negativos por ações positivas. Descolori de vez os fios e agora sou loira e feliz.
Nas crises de baixo-astral, ergo os braços bem alto para absorver a energia cósmica. Demora uns trinta minutos, porque o universo é muito grande e distante. Sinto sua força invadir meu corpo quando os braços começam a formigar.
Os livros também explicam direitinho que, para ficar rico, ninguém precisa acertar sozinho a mega sena. Precisa é pensar como os ricos. Agir como os ricos. Usar a força do subconsciente para acionar a lei da atração, acreditando firmemente que suas dívidas são lucros.
Para enriquecer em família, um futuro milionário deve começar convencendo a mulher e os filhos da necessidade de fazer sacrifícios. Como, por exemplo, passar três anos a pão e água. Diante das tentações da mesa, devem imaginar o sabor de todas as delícias que poderão comer à vontade quando se tornarem ricos.
Confesso que achei mais fácil realizar os doze trabalhos de Hércules do que seguir os sete hábitos das pessoas altamente eficazes. Em compensação, descobri que para subir na carreira basta meditar como um monge, ter o entusiasmo de um adolescente que dá o primeiro beijo, estar preparado para enfrentar os desafios, ser um guerreiro criativo, flexível e ágil. Um bom profissional precisa ter, acima de tudo, capacidade para superar as adversidades, como concordar com as ordens estúpidas de um chefe incompetente, aturar um diretor chato e dominar a raiva diante do colega folgado que é sobrinho do patrão. Para garantir, é bom estudar chinês e fazer MBA.
O problema dos livros de auto-ajuda é que eles são tão numerosos que fico confusa na hora de escolher um título. Os livreiros deveriam ajudar, reunindo os livros por tema. Dava para fazer uma seção só de títulos como “O que aprendi com...”: o meu carteiro, os caiapós, o lápis, minha mãe, o Roberto Jefferson, a Bruna Surfistinha, os gansos, os pingüins.
E as baratas? Ninguém ainda falou sobre as baratas? Puxa, elas são a síntese de tudo o que aprendi com os livros de auto-ajuda. Um verdadeiro exemplo de adaptação e superação.
A barata pode ficar até uma semana sem se alimentar. Como tem pequenos cérebros espalhados por todo corpo, vive sem cabeça e só morre de sede em uma semana. Jogar no vaso sanitário não resolve: seu fôlego dura 40 minutos. Gatos que comem baratas morrem de toxoplasmose. Inseticidas são eficazes para matar a barata, mas não seus ovos. Seus baratinhos vão nascer resistentes ao veneno.
As baratas enfrentaram todas as alterações sofridas pela Terra nos últimos 300 milhões de anos. Os dinossauros desapareceram, mas as danadinhas não. Baratas podem comer qualquer coisa, até lixo atômico e sobreviverão ao apocalipse. Para matar uma barata, só com uma chinelada daquelas de espalhar meleca para todo lado.
Os autores de auto-ajuda estão ganhando uma grana preta. Acho que estou desperdiçando talento. Vou escrevrer um livro chamado “O que aprendi com as baratas”. Vou fazer o maior sucesso. Ficar milionária, virar celebridade, dar palestras, seminários, cursos, work-shops. Quem sabe, até consultoria para a indústria de inseticidas. Afinal, as baratas são a síntese de tudo o que aprendi com os livros de auto-ajuda.
Crônica publicada em Abril / 2008

Macacos e homens




Macacos e homens
Lucia Sauerbronn
Na Tailândia, os plantadores de coco usam macacos para fazer a colheita. Eles dão conta do recado direitinho e nem precisam de ferramentas. Em troca de algumas bananas, giram o fruto até quebrar a haste e ainda se divertem atirando os cocos lá de cima. Parece que a prática é antiga. E tão eficiente que os agricultores decidiram utilizar a técnica para colher mangas, mas não deu muito certo. Delicadas, as mangas devem ser retiradas no ponto certo para amadurecer e, se atiradas do alto, ficam imprestáveis para o consumo. Como a tarefa é mais complexa, o pagamento com bananas não fez o mesmo efeito. Quando um macaco mais esperto conseguiu retirar a fruta certa, o plantador ficou tão feliz que, para comemorar, abraçou o bicho. Na mesma hora, ele subiu na árvore e pegou outro fruto – do jeitinho do primeiro – e voltou para buscar um novo abraço. Hoje, a produção de mangas da Tailândia é colhida em troca de abraços e todos estão rindo à toa. Macaco não quer só comida. Também quer amor, diversão e arte. Faz sentido.
Uma vez assisti na TV um programa científico que mostrava uma experiência com macaquinhos. Havia três grupos deles. No primeiro, os filhotes foram deixados com a mãe. No segundo, a mãe era substituída por uma espécie de robô. Os do terceiro grupo viviam sozinhos, alimentados por uma mamadeira presa às grades. Os macaquinhos criados com a mãe eram sadios e alegres. Os do segundo grupo cresceram enroscadinhos entre si, grudados no pescoço do robô. Já os outros tornaram-se solitários, tristes e agressivos. Ficaram doentes e, depois de algumas semanas, apenas um sobreviveu.
Quando vejo crianças vendendo balas ou pedindo dinheiro nos faróis, acredito que eles acabam, de uma forma ou de outra, se alimentando. Por uma questão pessoal, ao invés de dar uns trocados, prefiro conversar. Pergunto da escola, da professora, de que matérias mais gostam. Elas abrem um largo sorriso e começam a contar que preferem matemática ao português, e até confessam que querem ser médicos ou professores quando crescerem. Se não estudam – e olha que são poucos, pois quase todos têm família – vou logo falando da importância de pensar no futuro. Dizem que me arrisco. Pode ser. Sei que é pouco, muito pouco. Mas acho que essa relação rápida e afetiva faz bem para mim e para eles, que conversam comigo até o farol abrir e depois me dão tchau, felizes como se tivessem sido abraçados.
Nunca recebi uma resposta agressiva, nem eles insistiram para que eu comprasse balas ou exigiram moedas depois. Uma vez, num congestionamento, bati um longo papo com dois meninos muito simpáticos e espertos. No final, quis comprar as balas que vendiam mas, consultando a carteira, encontrei apenas uma nota de cinqüenta. Como que para pedir desculpas, abri a carteira e levei a maior bronca. Eles me aconselharam a nunca mais mostrar que tinha dinheiro, pois corria o risco de ser assaltada. E me deram a caixinha de balas de presente. Não tive coragem de rejeitar. Saí de lá com a sensação de que devia a eles muito mais que um punhado de balas.
Dizem que os seres humanos são meio aparentados com os macacos. Não sei quem puxou a quem, mas nós também somos capazes de fazer qualquer coisa por um chamego. Mesmo alimentados, bebês choram pedindo colo. Maiorzinhos, se não têm atenção, fazem birra. Adolescentes, fazem barulho. Adultos, tornam-se arredios ou chatos. Se alimento fosse tudo, as pessoas que comem três vezes por dia seriam felizes, equilibradas e saudáveis. Apenas os famintos cometeriam crimes, ultrapassariam sinais fechados e brigariam pelo controle remoto da TV. Mas não é bem assim. Os macacos estão certos. Na maioria das vezes, tudo o que precisamos é de um abraço. Artigo que se torna cada vez mais raro que um prato de comida.
Na Tailândia, a colheita de mangas pelos bichinhos é um sucesso. Mas nunca será tão simples quanto a de cocos. É que, embora os macacos andem fazendo fila atrás de uma vaga no serviço, eles rejeitam abraçadores profissionais. Preferem aqueles que se mostram sinceramente agradecidos por seu desempenho.
Crônica publicada na Coop Revista - Outubro / 2000

A cadela e o papagaio



A CADELA E O PAPAGAIO
Lucia Sauerbronn
Quando as crianças eram pequenas, aos sábados dormiam na casa dos avós. As manhãs de domingo eram nosso momento de paz. Sem relógio e sem filhos, a gente não saía da cama, com direito a namorar, vagabundear e dizer as bobagens que os casais apaixonados costumam dizer. O silêncio daquelas manhãs mágicas só era quebrado pela conversa entre nossa cadela e o papagaio do vizinho.
Vocês podem não acreditar, mas naquela época bichos de estimação eram tratados como animais. Não dormiam aos pés da cama, não comiam ração vitaminada nem iam ao pet shop. Vida de gato, por exemplo, era fácil. Bastava ser gato. Já o cachorro tinha obrigação de cuidar da segurança da casa.
Não era o caso da Chaira, uma linda boxer de pelo marrom e focinho branco. Nós a compramos para fazer companhia aos meninos. Quando chegou, era pequena e engraçadinha. Por algum tempo, os três viveram felizes, jogando bola e rolando pelo tapete da sala. Diferente dos cães do bairro, ela dormia numa almofada no quarto e de manhã acordava as crianças com beijinhos lambidos.
Ela cresceu bem mais depressa que os meninos. Logo eles passaram a fugir dos seus carinhos estabanados, que já então machucavam. O jeito foi construir uma casinha para ela no fundo do quintal. Por algum tempo, fomos para a cama cheios de remorso, ouvindo seus gemidos na solidão da noite.
Sair no quintal virou uma tortura. Ela babava e urinava de gratidão por qualquer cosquinha na cabeça. Inconformada em ficar sozinha, prendia nossas pernas com as patas. O jeito era arrastá-la até a cozinha e chacoalhar os pés com energia, batendo depressa a porta sem dar tempo para ela entrar.
Matriculamos nosso bebezão de quatro patas numa escola de cães. Quem sabe, adquirisse bons modos. Na terceira aula, o treinador desistiu. Ela brincava, não obedecia e atrapalhava os outros alunos. Passear com a coleira era um verdadeiro suplício. Ela é que nos guiava. Às vezes nossos filhos se divertiam com outros cãezinhos. Não podíamos acusá-los de traição. Nós mesmos evitávamos nossa cadela, vítima de uma carência afetiva de causar pena.
Certa vez fugiu de casa. Acho que para chamar atenção. Percorremos as ruas do bairro em pânico. O medo era de que, numa atitude desesperada, ela se atirasse sob as rodas de um carro. Duas horas depois, a encontramos brincando tranquila com algumas crianças. Correu para nós abanando o rabo, como se fugir de casa fosse coisa normal. Diante de manifestações de fragilidade emocional, chegamos a procurar um veterinário homeopata, que receitou uns florais. Mas ela mastigou o frasco.
Já o papagaio do vizinho nunca foi dado a demonstrações de afeto. Com ele, crianças não tinham vez. A resposta para “dá o pé loro” era umas boas bicadas. Passava seus dias quieto, mastigando sementes de girassol e nacos de banana. Se estivesse de bom humor, podia até fazer uma gracinha. No geral era um papagaio educado, que sabia seu lugar. Não dizia palavrão, não fazia sujeira.
O pessoal da casa respeitava a personalidade circunspecta como a de um velho ranzinza que atura seres humanos por falta de opção. Nos dias de chuva ficava amuado. Quando tinha visita, permanecia calado. A família só se deu conta da falta que fazia quando sumiu e reapareceu dias depois, sem qualquer explicação.
Nossa cadela e o papagaio do vizinho eram de personalidades bem diferentes. Mas tinham o mesmo inimigo: a solidão. Durante a semana, se distraíam com o barulho da rua, o movimento das pessoas. Mas não suportavam a dureza das manhãs de domingo.
Do lado de lá do muro, ele chamava seu nome. Do lado de cá, ela soltava um latido longo e ressentido. A conversa, monótona, podia durar horas. De vez em quando ele se animava a cantar. Em resposta, ela dava vários latidos, como se aplaudisse a ousadia.
A Chaira morreu aos 13 anos. O papagaio, pouco tempo depois. Nunca se viram, mas sempre se amaram. Hoje me pergunto porque nunca me ocorreu de formalizar as apresentações. O papagaio talvez não suportasse a dura realidade: Chaira não passava de uma cadela. Já ela não tinha idéia de que se tratava um papagaio. Imagine sua decepção diante daquele ser manco, de penas verdes e bico em forma de gancho, caso um dia ele tivesse a coragem de se libertar da corrente para visitá-la.
Seria o fim trágico de uma linda história de amor. Os dois viveram separados pelo muro, respeitando uma distância que só fez fortalecer seus laços de afeto. Afinal, como todo mundo sabe, dividir o mesmo espaço acaba até com a mais louca paixão.
Crônica publicada na Coop Revista - Março / 2008

Temporada de caça



Temporada de caça
Lucia Sauerbronn
Como boa representante do sexo que enlouquece em tempo de liqüidação, confesso que já torci para minha vizinha de provador desistir de um vestido, que acabei comprando por uma bagatela. O modelo é lindo, apesar de um pouco apertado. Se perdesse uns quilinhos, talvez arriscasse usá-lo. O problema é a cor, entre o azul desbotado e o verde-amarelado. Há anos vive pendurado no armário, com etiqueta e tudo.
Tive, com uma calça de lã xadrez, um caso de amor à primeira vista. Nem me importei com o fato de ser dois números acima do meu. Apesar dos esforços da costureira em transformar um 44 em 40, cada vez que tento vestir, desisto: pareço um saco de batatas amarrado pela cintura.
No calor da emoção, certa vez não resisti a um adorável par de sapatos pretos de bolinhas brancas. No mesmo dia, usei numa festa. Eram lindos, me senti maravilhosa. Passei cinco horas sentada, com os pés 35 espremidos no tamanho 34, amargando a dor que subia da ponta dos dedos ao topo da cabeça. Guardei os sapatinhos de Cinderela na caixa. Não consegui esquecê-los nas quatro semanas que levei para curar os calos e bolhas que eles provocaram.
Cada vez que termina uma estação e o preço das roupas e sapatos cai pela metade, as mulheres são tomadas por uma compulsão consumista. Saímos à caça de pechinchas que antes custavam uma fortuna.
Li outro dia que uma dessas lojas famosas, que só vendem roupas de grife, anunciaram um sale (nome sofisticado para uma queima geral de estoque) e colocaram à disposição das clientes carrinhos de supermercado. Imagine centenas de mulheres arrancando as peças das araras e jogando no monte, com a sensação de que estavam fazendo um negócio da China: jeans de oitocentos por quatrocentos reais; bolsas de quatro mil pela metade do preço, sandálias por apenas três parcelas de trezentos!!! O resultado dessa farra toda são mulheres que parecem vitrines ambulantes, exibindo logotipo até na calcinha.
O chato das grifes é que, de um ano para outro, o estilo muda completamente. Já comprei um maiô estampado de marca famosa por um precinho bem bacana, pensando em arrasar no verão seguinte. Quando desfilei na piscina, ouvi o comentário maldoso de que aquele modelo tinha sido o maior sucesso da coleção passada.
Qualquer mulher sabe que, no meio da loucura, é preciso agir rápido, antes que uma adversária descubra aquele casaquinho de renda chiquérrimo. Você arremata a peça, pensando que ela será muito útil caso seja convidada para um baile de gala da rainha da Inglaterra. Contaminada pelo vírus da promoção, não é difícil errar a mão e comprar roupas que não têm nada a ver com o próprio estilo. Frente a frente com um justíssimo vestido vermelho de cetim, até a mais recatada senhora calcula que talvez seja hora de arriscar uma mudança radical e se transformar numa perua sexy.
Diante de uma oferta de 50% off, novo apelido para a mesma velha liqüidação, às vezes a gente exagera. Tenho uma amiga que comprou quatro pares de sapatos idênticos, mas de cores variadas, porque estavam tão baratinhos! Liqüidação tira qualquer mulher do sério, a ponto de estourar os limites do bom-senso e do cheque especial.
Depois de passar pelo caixa, deixar a loja cheia de sacolas com ar triunfante, a excitação acaba e a gente sai do transe. Aí bate o remorso. Conheço mulheres que escondem tudo na casa da mãe e vão usando uma peça por vez, para o marido não desconfiar. Como se, mais dia, menos dia, não fossem traídas pela conta do cartão de crédito.
Além de paixões repentinas por peças de gosto duvidoso, meu problema com as liqüidações é que não tenho paciência para esperar um provador vazio. Só em casa é que percebo a besteira. Se ficou justo, nunca tem tecido suficiente para alargar. Se o caso for apertar, a roupa perde o corte, fica desajeitada, deselegante. Como nem sempre deixam trocar, vou entupindo o armário com coisas inúteis.
Este ano, fiz um balanço das peças em promoção que comprei, mas jamais usarei. Resolvi me prevenir. Para evitar cair na tentação, fui às compras antes que as lojas anunciassem suas ofertas imperdíveis. Escolhi um pretinho básico, uma boa camisa branca, uma calça de corte impecável e um par de sandálias de tirar o fôlego. Na semana seguinte, tudo estaria pela metade do preço. Mesmo assim, garanto que fiz a maior economia.
Crônica publicada na Coop Revista - Fevereiro / 2008

Eu juro que é melhor





Eu juro que é melhor
não ser o normal
Lucia Sauerbronn
– Olha 2008 aí, gente!
Nem estourei o champagne para comemorar o ano novo e já comecei a ouvir os batuques anunciando o carnaval. Que desta vez vai ser logo no começo de fevereiro. Ou seja, praticamente amanhã. O que nos coloca mais próximos da Páscoa, que é pouco antes do Dia das Mães. E do meu aniversário.
De novo? Pode ser que eu esteja confusa, mas parece que quanto mais os anos passam, mais depressa eles passam. Não foi no mês passado que brindei 2007? Sei que sou distraída, mas nem tanto. O que foi que eu fiz nos outros 11 meses do ano que passou?
O médico me tranquilizou: 80% das atividades de um adulto são pura rotina. Mesmo que exijam movimentos complexos, como dirigir entre malucos no trânsito, a maior parte a gente faz sem prestar atenção. O perigo é que, ligado no piloto automático, o cérebro fica preguiçoso e com o tempo começa a esquecer coisas importantes. Como a panela que deixei no fogo a noite inteira.
Para me defender do risco de incendiar a casa, ele disse que eu precisava pôr meus neurônios para malhar. Segundo ele, a neuróbica – aeróbica dos neurônios – é a nova técnica da medicina para combater a falta de memória e afastar o Mal de Alzheimer. Explicou ainda que a doença não é um mal moderno. Só que, antigamente, as pessoas morriam antes de apresentar seus sinais. Com tantos meios de diagnosticar doenças, minha geração deve chegar aos cem anos contando piadas. O problema é chegar lá contando sempre a mesma piada.
Fiquei tão animadinha que corri comprar um livro que ensina como manter o cérebro vivo. Os autores explicam que as células nervosas são capazes de se multiplicar quando exercitadas. Por isso, a primeira coisa a fazer é deixar a preguiça de lado e pôr as vagabundas em movimento. Imaginei aqueles meus pobres neurônios cansados saltitando cheios de energia. Quem sabe, enquanto faziam musculação, começassem a conversar e se entender melhor.
Para ativá-los, é preciso mudar comportamentos mecânicos. A idéia principal é fazer tudo ao contrário. Estou seguindo à risca todos os conselhos. Passei a usar relógio no braço direito, me vestir de olhos fechados, andar de costas e experimentar novos sabores. Os exercícios sugeridos incluem olhar fotos de cabeça para baixo, ir ao trabalho por novos caminhos, trocar de lugar na hora das refeições. Para manter o cérebro ativo, é preciso evitar o comodismo, ter novas sensações corporais, táteis, auditivas, gustativas, visuais, adquirir um novo estilo de vida e modo de pensar.
No começo, achei um pouco difícil. Mas logo me entusiasmei e levei os treinos tão a sério que inventei outros exercícios por conta própria. Por exemplo, troquei o dia pela noite. Agora durmo enquanto todos trabalham. Janto, portanto, quando os outros almoçam. Como a sobremesa antes do prato principal. Mas não tem importância, já que coloco sal no bolo e açúcar no feijão. Trabalho no fim de semana e folgo nos outros dias. E quando vou trabalhar, pego o caminho do cinema. Leio o jornal de ontem no lugar do de hoje. Isso me dá a sensação de que estou sempre um dia mais jovem.
De vez me atrapalho um pouco, mas acho que é parte do jogo do fazer diferente. Já coloquei a forma de gelo no microondas, passei condicionador de cabelo no rosto, escovei os dentes com creme de barbear, fui às compras com um pé de cada sapato. Mas os saltos eram do mesmo tamanho.
Também voltei a contar piadas. Começando do final, é claro. Tenho tentado explicar a importância da neuróbica para as pessoas, mas nem todas compreendem. Os guardas de trânsito, por exemplo: vivem me multando porque ando na contramão e troco o sinal verde pelo vermelho!
Uma coisa é certa: nunca me diverti tanto! Só estou preocupada com meu marido e meus filhos, que andam muito estressados. Eles insistissem em me levar ao médico, achando que estou exatamente com a mesma doença que aprendi a evitar.
Crônica publicada na Coop Revista - Janeiro / 2008

Visita



Visita
Lucia Sauerbronn
Não gosto de seus beijos molhados, mas a festa que ela me faz vale a pena. Me abraça apertado (sinto o cheiro de seus cabelos ralinhos), se afasta, segura o rosto entre as mãos e sorri: não acredita como eu cresci. Diz que fiquei bonita como ela imaginava. Quando reclamo que a idade não melhorou o nariz, ela, fingindo mágoa, aponta a própria foto amarelada. Rimos juntas e ouço que semente não cai longe do pé.
São tantas perguntas, o tempo é curto para respostas. Ela acompanha com os olhos da imaginação o relato que faço de tudo: a casa, as crianças, o trabalho. Faz frio. Ela se acomoda na cadeira de balanço. Ajeito o xale sobre as pernas magras e me aconchego em seu colo. Naquele abraço, tenho dez anos, seu coração ainda bate forte e compassado. Desejo ficar assim, presa ao útero do tempo, mas ela não contém a agitação: levanta, ajeita a toalhinha de crochê do aparador, percorre a sala com o olhar, revirando a memória em busca do melhor agrado. Vai em direção ao quarto e me estende o volume. Reconheço cada marca nas páginas do livro ilustrado.
Entretida, não percebo quando ela sai. Observo o cenário que o tempo não modificou: a cristaleira com os bichos de vidro que eram meu zoológico, os copos azuis em que eu tomava chocolate quente. Ao pé de Nossa Senhora, o terço de contas gigantes. Puxo os pinhões do relógio: são quase três horas. Percebo o sorriso que vigia a porta da cozinha, mas não me volto, espero o cuco cantar. Enxugo, com a manga da blusa, as gotinhas de vapor na janela. Por trás da cortina, o vento balança os galhos do salgueiro-chorão onde eu me escondia nas tardes quentes de janeiro.
- Por que sua mãe não veio? - ela pergunta desaparecendo na despensa. Sobre a pia, a velha lata de farinha, o açúcar, a peneira e os ovos lembram uma natureza-morta. Invento qualquer desculpa, mas ela já não ouve: agora agita com vigor o batedor de ovos contra as claras que, sem resistência, espumam. Ajudo com a gemada, misturando açúcar àquelas patacas quase vermelhas que as galinhas produzem livres no quintal. Besunto manteiga na forma, espalho a farinha. Ela despeja a massa amarela e grossa, com a colher de pau firme entre seus dedos nodosos.
O bule de ágata vai para cima do fogão a lenha, quente como se estivesse eternamente à minha espera. Estendo a toalha xadrez sobre a mesa e ajeito as xícaras. Saio de mansinho porta afora e me lanço pelo corredor lateral; corro batendo com força os pés, reconhecendo o som do canos que se alongam em direção à rua. Furo polegar e indicador nos espinhos da roseira. Preparo o buquezinho e ajeito as hastes entre ramos de pinheiro. Tenho nas mãos o arco-íris. Nunca me pareceu estranho que rosas azuis brotassem naquele jardim. Escondo as mãos nas costas, persigo o cheiro de bolo e levito de volta à cozinha. Com o vidro de geléia na mão ela me olha, censurando. Trocamos sorrisos cúmplices: sou a única com autorização para colher flores daquele jardim.
Corro lhe dar um beijo. Ela não consegue disfarçar a emoção em seus olhos marcados e se vira para pegar no armário o pequeno vaso de porcelana, que enche e enfeita com o buquê.
O leite chia na chapa quente. A espuma grossa transborda a leiteira que ela ergue, sopra e reclama:
- A gente vigia, vigia, e basta piscar.
Do forno tira o bolo inchado, a massa estourando em flor dourada no centro. Com ajuda da peneira, salpica açúcar perfumado de baunilha. Lambuzo as fatias grossas com manteiga, que desaparece nos furinhos fumegantes. O bolo e o café com leite afastam o frio e a tristeza. Ela recolhe a louça, ajudo a lavar e me despeço.
Prometo voltar. Ela sorri, compreendendo, e desaparece na bruma, entre os escombros da casa, para onde um sonho de traidoras memórias me transportou sem avisar.
Crônica publicada na Coop Revista - Junho / 2008

Ser um homem feminino



Ser um homem feminino
Lucia Sauerbronn
não fere o seu lado masculino?
Moça direita não pisava em salão de bilhar. Nem mesmo mulheres disputadíssimas nos bordéis da cidade eram bem vistas entre as mesas e tacos de sinuca. Ficávamos curiosíssimas. Além de bolinhas coloridas sobre feltro verde, o que será que rolava lá dentro? Nada, eles juravam, escondendo as revistas de mulher pelada. O salão de bilhar era um templo de machos, um clube do bolinha. As mulheres não tinham seus salões de beleza? Então! Cada um na sua. Salão de beleza era lugar em que homem não pisava nem morto.
Hoje alguns salões têm até garçon sarado servindo café. Mas nem sempre foi assim. Quase toda cabeleireira trabalhava num quarto abafado nos fundos de casa, que cheirava a acetona e química de permanente. O calor era sufocante, e o barulho dos secadores, infernal. De beleza, por sinal, não tinha nada. Com suas pinças, tesouras e alicates mal afiados, o ambiente estava mais para sala de tortura. As poltronas, cadeiras e espelhos eram sobra da mobília da casa. Um visitante desavisado era capaz de pensar que se tratava de uma reunião de bruxas: mulheres com a cabeça lambuzada de tintura coberta por toucas de plástico, cabelos presos com bobbies para enrolar e bigudins para cachear, pés mergulhados em bacias plásticas com água e sabão em pó. Ali, homem não entrava. Até porque não tinham nenhum interesse em ver mulheres que ficavam feias para ficar bonitas.
Apesar de decadente, nosso clube da Luluzinha era divertidíssimo. Elas chegavam logo depois do almoço, de lenço de seda na cabeça lavada. Enquanto faziam as unhas e tratavam os cabelos, trocavam dicas de beleza e de alcova, receitas de bolo, chás para cólicas de bebê, infusões para as dores femininas. Mas, acima de tudo, apareciam para ouvir as novidades da semana.
O barulho dos secadores elevava o tom da conversa, de modo que aquele não era um lugar para segredos. Os secadores, por sinal, causaram muito estrago na vizinhança. Às vezes alguém contava que o marido de fulana estava saindo com sicrana. E a fulana ali, escondida sob o capacete do secador de coluna, ouvindo a história tim-tim por tim-tim, apesar dos olhares desesperados da dona do salão.
Mas nem tudo eram maledicências. Era comum uma cliente amargurada com o casamento abrir o coração e pedir conselhos. Como mulher não nega conselho, o salão inteiro dava palpite, cada uma contando a própria experiência. A sessão de terapia em grupo custava no máximo um corte de cabelo.
Devagar, os homens foram chegando. Primeiro, assumiram as tesouras. E, como a maioria dos profissionais de beleza não oferecia risco a maridos ciumentos, eles foram muito bem-vindos. Além de conhecer as últimas tendências de moda, regimes e tratamentos estéticos, eles levavam uma vantagem sobre suas concorrentes. Eram homens. E sabiam como os homens pensavam.
Foi uma revolução. As confidências se tornaram quase consultas. Com sua visão esclarecedora, muitos cabeleireiros ajudaram as mulheres a compreender o universo masculino. Inclusive sua necessidade de freqüentar sozinhos, com seus tacos e bolas, o salão de bilhar. Devia estar escrito na Constituição: toda mulher tem direito a um amigo assim.
Tudo funcionou direitinho até que surgiram os metrossexuais. Nosso templo foi invadido por machos que assumiram seu lado feminino. Perdemos a naturalidade com homens sentados na poltrona ao lado, escolhendo o corte de cabelo da moda, fazendo tintura, escova progressiva, chapinha, hidratação, relaxamento nos fios, manicure, pedicure e limpeza de pele.
Está certo. Nas últimas décadas, nós também conquistamos espaços que eram só deles. Hoje tem mulher na construção civil, caminhoneira, frentista. Só não sei se há alguma que se interesse por bilhar. Mas francamente! Vaidade masculina tem limite! Até depilação os homens andam fazendo! Começaram tirarando os pêlos do nariz e das orelhas. Depois, das sobrancelhas. Agora, depilam o peito. Mas, para mostrar que eles têm peito, mesmo, quero ver se submeterem a uma depilação com cera quente nas partes íntimas...
Crônica publicada na Coop Revista - Dezembro / 2007

O pior cego é aquele que não quer admitir



O pior cego é aquele que não quer admitir
Lucia Sauerbronn
Com o perdão da palavra, sou presbíope. Assumida, mas não conformada. Antes que alguém pense que se trata de uma nova religião, saiba que, se você já não consegue enxergar a data de validade do iogurte, a sua data de validade é que está vencida. Bem-vindo ao clube do time da vista cansada.
No começo, bem que relutei. Quando se tornou impossível encontrar a linha pontilhada do pacotinho de biscoitos, recorri aos colírios. Quando passei a usar agulhas cada vez mais grossas para conseguir enfiar a linha de costura, fiz compressas de água boricada. Quando meus braços se tornaram curtos para enxergar o texto da bula de remédio, tomei anticoncepcional pensando que era analgésico. Fui ao oculista. Ele procurou me acalmar: 62% da humanidade acima dos 40 anos não vive mais sem a companhia de um par de óculos.
Para quem descobriu a miopia na primeira infância, os óculos funcionam como uma extensão do corpo. Antes de fazer, por ordem médica, uma cirurgia para corrigir seus oito graus, meu marido se tornou tão dependente que colocava os óculos até para desligar o despertador. Apesar de voltar a enxergar o mundo livre, leve, solto e colorido, ele sentiu muita falta do velho companheiro de infortúnio.
Já eu, como diz a música, não nasci de óculos. E, como junto com a visão vai-se embora a memória, nunca sei onde deixei o dito-cujo. Até tentei comprar uma daquelas correntinhas para pendurá-los. Quando me vi com a aparência da velha bibliotecária do grupo escolar, guardei na gaveta para sempre. Só que, sem óculos, não consigo encontrar os óculos. Apelei então para os descartáveis. Tenho um em cada canto: na sala, no quarto, no escritório, no banheiro, no carro. O que nem sempre funciona. Enxergo bem de longe, o que torna impossível dirigir de óculos, por exemplo. Para ler o endereço no papel, ponho os óculos. Para olhar o trajeto, tiro. Nesse põe e tira, bati o carro mais de uma vez.
E no banheiro, então? Depois do banho, seco o cabelo. O banheiro se enche de vapor. As lentes embaçam, é impossível me maquilar. Para pintar os olhos, entorto a armação para enxergar o olho direito com o esquerdo. E vice-versa. Tirar a sobrancelha é uma tortura. Termino com as pálpebras picadas. Comprei um daqueles espelhos que aumentam a imagem. Foi pior: passei a enxergar todas as minhas rugas.
Usar óculos pôs fim aos jantares românticos. Presbiopia não combina com luz de velas. Antigamente, os restaurantes tinham dois tipos de cardápio. Um para os homens, outro para as mulheres, sem o preço. Hoje, que as mulheres estão emancipadas e ganham o próprio dinheiro, a gentileza parou de fazer sentido. Melhor seria fazer um cardápio com letras garrafais para presbíopes. Escolho o que vou comer sob o conforto da luz do banheiro.
Na hora de fazer compras, o sacrifício não é menor. Não dá para dar aquela disfarçada na hora de ver o preço da roupa. Escolho o vestido sem óculos. Para ler a etiqueta, ponho os óculos. Tiro os óculos para experimentar. Ponho os óculos para conferir a conta.
E o cartão de crédito? Deveria ser do tamanho de um envelope. Tenho treinado para reconhecer os números em relevo com a ponta dos dedos. No caixa eletrônico, sou um perigo. Para não esquecer a senha do banco, que mudo de tempos em tempos por segurança, carrego um cartãozinho com os números bem grandes. Assim enxergo. O próximo da fila também.
Como sou desajeitada e vivo derrubando o celular, eles não duram seis meses. Os modelos, cada vez menores, têm teclados diferentes. Ao invés do send, aperto o botão da máquina fotográfica. Meu pé já foi clicado tantas vezes que dá para fazer uma exposição das fotos. A indústria ainda não descobriu o grande mercado dos presbíopes. Meu sonho de consumo é um celular com teclas e números enormes, coloridos. O mesmo vale para aqueles ridículos botõezinhos do controle remoto.
O mundo digital, por sinal, não está preparado para nós. Quem projeta computadores certamente não chegou aos 40. A uma distância de um metro da tela, sem óculos, as letras dançam, se confundem. Com os óculos, ler à mesma distância dá um enjôo danado. O jeito foi o oculista receitar um par de lentes com a metade do grau para trabalhar no computador. A dificuldade começa quando tenho de ler minhas anotações. Ponho os óculos para ler o papel, troco de óculos para ler a tela. Levo o dobro do tempo para terminar um texto.
O oculista, cansado das minhas reclamações, sugeriu uma alternativa: usar num dos olhos lente de contato para perto, no outro, para longe. Meu cérebro ficou aparvalhado e reagiu com uma crise de labirintite.
Vivo na esperança de surgir uma cirurgia para presbiopia. Está difícil. Presbiopia é o enfraquecimento muscular do cristalino, um recurso da natureza para colocar nossos olhos no foco, como uma máquina fotográfica. Tentei fazer musculação ocular: olhar repetidamente para um livro e para o horizonte. Consegui uma tremenda dor de cabeça. A vista ficou mais cansada.
Cada vez que volto ao oculista ele aumenta o grau. Melhora, mas não resolve. Continuo a ter dificuldade para ler bula de remédio. Mas arrumei um jeito de não tomar viagra achando que é calmante: além dos óculos, conto com a providencial ajuda de uma potente lupa.
Crônica publicada na Coop Revista - Novembro / 2007

Cenas de um casamento



Cenas de um casamento
Lucia Sauerbronn
Tomados de paixão cega e surda, mas não muda, um dia dois pombinhos chegam à conclusão de que foram feitos um para o outro. E que é hora de dividir o mesmo teto. Como diz o ditado, a lua de mel não vai durar mais que um saco de sal. Como se sabe, sal se usa um pouquinho por dia e a doçura dos primeiros dias logo vai ter sabor de pimenta malagueta. É o tempo exato de descobrir que a princesinha tem humor de bruxa quando acorda. E que, esparramado no sofá depois do almoço de domingo, o príncipe bem que lembra um sapo.
Antes um ninho de amor, a casa logo parece pequena para dois. A começar pela cama. Ele dorme de pernas e braços abertos. Ela, encolhida no espaço que sobra. Ela tem os pés gelados, ele sonha com um ar condicionado. Se esfria, disputam o cobertor. Ela se enrosca nele. Ele diz que não consegue respirar. Ela quer discutir a relação. Ele vira do outro lado. E ronca.
De manhã trombam no banheiro. Disputam o direito de usar o chuveiro primeiro. Ele tem nojo de encontrar fios de cabelo no sabonete. Ela tem chiliques porque ele joga a toalha de banho no chão. Ela estraga o fio do aparelho de barbear depilando as pernas. Ele detona o seu xampu predileto. Ela ocupa a pia toda com potes de creme.
Ele deixa a pasta de dentes aberta.
Ele lê jornal enquanto toma o café (ela gosta fraco; ele, forte). Ela afasta o jornal de cima do pão. Ele tampa o pote de margarina assim que ela retira a faca. Ela só compra queijo branco; ele prefere amarelo.
Ela esquece as luzes acesas. Ele apaga todas as luzes da casa. Ele gasta dinheiro com bobagens. Por mais que compre sapatos, ela nunca tem um que combine com o vestido.
Na direção, ele vira piloto de fórmula 1. Cola no carro da frente, acelera quando vê que o farol vai virar vermelho. Ela reclama do excesso de confiança dele. Ele, que ela não confia nele. Se estiver perdido, jamais admite parar e perguntar o caminho. Mesmo que a estrada acabe num riacho no meio da mata atlântica. Ela cutuca: eu não falei?
Ela gosta de novela. Ele também, mas jura que não. Prefere esporte. Não perde um jogo de futebol. Principalmente se for copa do mundo. Ela resmunga que ele assiste até partida entre Trinidad e Tobago. Ele diz que ela não entende nada: Trinidad e Tobago são um país só.
Ele nunca percebe quando ela corta o cabelo. E só lembra de elogiar o vestido quando
ela vai sair sozinha. Ele reclama se ela chega em casa mais tarde do que ele. Não importa a hora que ele chegue, ela sempre faz cara feia quando ele vai tomar cerveja com os amigos.
Se vão ao cinema, ela prefere filmes de amor. Ele, de ação. Ele não gosta de chegar atrasado. Ela demora para se arrumar. Ele faz plantão na porta do banheiro, olhando o relógio. Ela sai, mas volta porque esqueceu de passar perfume.
Ela prepara um jantar romântico para comemorar o aniversário de casamento. Ele esqueceu a data, e telefona avisando que vai chegar tarde do trabalho. É o fim da linha. Os dois decidem que é impossível continuar a viver juntos com tantas incompatibilidades. Um faz a mala, outro concorda: é melhor assim.
A cama agora é grande demais. Ele sente falta daquele corpo macio enroscado no dele. Aspira fundo o ar, buscando o cheiro doce que só ela tem, mistura de pele, xampu, perfume e creme. Sorri, lembrando da indecisão dela diante do armário. Bobagem. Ela é linda de qualquer jeito. Da ternura que sente ao vê-la chorar no cinema, como dá conta de todos problemas, pequenos e grandes, do seu ar interessado quando ele conta uma história.
Sozinha no silêncio da noite, ela sente frio. Abraça o travesseiro dele, que cheira a cabelo e pasta de dentes. Sorri, lembrando do jeito engraçado que ele tem de sair do banho enrolado na toalha, do seu modo desajeitado de demonstrar ciúme, de insistir que está certo mesmo diante do erro mais óbvio.
Viver a dois não é fácil. Sozinho, menos ainda.
Crônica publicada na Coop Revista - Outubro / 2007

Bei Jing Huan Ying Ni*



Bei Jing Huan Ying Ni*
Lucia Sauerbronn
A China fica bem embaixo do Brasil. Se a gente abrisse um buraco que varasse o mundo, era capaz de cair na Cidade Proibida, onde os imperadores viveram por seis séculos e que é o lugar mais bonito da China. Embora morem do outro lado do planeta, é claro que os chineses não andam de cabeça para baixo. Mas que por lá tudo é ao contrário, ah! isso é mesmo. Por exemplo: lá, hoje é amanhã e amanhã hoje foi ontem.
Na China todos os dias nascem milhares de bebês de olhinhos puxados, o que leva a gente a pensar que os chineses são todos iguais. Na verdade, eles também acham que nós, ocidentais, somos todos iguais por causa do nosso nariz grande. E tem mais: 91% da população pertence à etnia Han, e o resto se divide em 55 outras etnias – que eles chamam de minorias – e têm traços muito diferentes.
A língua oficial deles é o mandarim. Mas as minorias juntas falam outros oitenta dialetos e línguas! Aprender chinês não é fácil porque, para piorar, cada vogal tem quatro entonações, o que muda completamente o sentido da palavra. Por exemplo, se alguém disser ma..., pode estar chamando a mãe. Mas, se alguém disser má!, não se espante se ele estiver apontando um cavalo. Ainda bem que, como em qualquer parte do mundo, muito chinês já fala inglês.
O legal é que, apesar dessa confusão toda, a maioria das palavras se escreve do mesmo jeito. É que o chinês não tem alfabeto, mas ideogramas, que são desenhos cheios de riscos e tracinhos que juntos exprimem uma idéia. Isso poderia representar uma grande economia de papel. O problema é que, para se expressar através da escrita, o chinês pode usar mais de 50 mil caracteres diferentes. Mas quem conseguir aprender uns 5.000 já pode quebrar o galho...
Antigamente, as famílias eram muito numerosas e não costumavam pôr nome nas crianças, para evitar que os maus espíritos viessem roubá-las. Eles chamavam de primeiro filho, segundo filho, e assim por diante. Hoje cada casal só pode ter um filho, por isso eles às vezes têm nomes estranhos como Ímpar. Os pais torcem por um menino para dar continuidade ao nome da família.
Lá é tudo tão ao contrário que o sobrenome vem antes do nome. E eles não são muito criativos. Existem 93 milhões de pessoas com o sobrenome Li, outros 93 milhões são Wang, dando a impressão de que todos são parentes. É como se metade dos brasileiros chamassem Silva e a outra metade, Santos. Só que, assim como os Silva e os Santos, os Li e os Wang representam apenas um oitavo da população chinesa, que é de 1 bilhão e trezentos milhões de pessoas.
Alimentar toda essa gente não é bolinho. Por isso, tudo o que voa e não é avião, tudo o que anda e não é carro e tudo o que se move na água e não é barco pode acabar na panela. Eles comem coisas estranhas como escorpiões fritos e cavalos-marinhos assados, iguarias que acham tão saborosas como são para nós os rabos, pés e orelhas de porco que fazem parte da nossa feijoada.
A refeição na China é um momento de união. Ninguém come sozinho. As pessoas sentam em torno de uma mesa giratória e, usando pauzinhos, vão se servindo dos pratos coloridos com legumes e verduras, carne de vaca, porco, frango, pato. Ao invés de refrigerantes, eles preferem tomar chá, que ajuda a digestão.
A China existe há quase 6.000 anos. Foi lá que inventaram o macarrão, o sorvete, o papel, a porcelana, a seda, o guarda-chuva, a bússola, a pólvora, o arado, o carrinho de mão e até os óculos do sol. Inventaram também o dragão, um bicho que não existe, mas está em toda parte.
Durante 23 séculos, quem mandava na China eram os imperadores. Há 60 anos são os comunistas. Mas, desde que o líder Deng Xiaoping declarou que “enriquecer é glorioso”, os chineses são mesmo consumistas.
Por isso, o dragão, que representa o poder do fogo que destrói para permitir o nascimento do novo, nunca teve tanto trabalho. Prédios velhos estão virando cinzas, dando lugar a praças e jardins floridos, avenidas largas e edifícios ultramodernos. Em cidades como Pequim (ou Beijing, como eles dizem), o número de carros (quase 3 milhões e meio) já superou o de bicicletas, e juntos produzem um congestionamento dos diabos. Eles também trocaram o som dos grilos, que traz sorte, pelo dos celulares, que não param de tocar. É claro que nem toda a população da China pode comprar tudo isso. Mas, assim como no Brasil, um país de grandes diferenças sociais, a qualidade média de vida por lá anda melhorando rapidamente.
Para os chineses, os números exercem grande influência na vida. Ao invés do 13, eles acham o 4 azarado, pois tem o mesmo som do verbo morrer. Até outro dia, os números mais importantes eram o 6 (da calma e da suavidade) e o 9 (da longevidade). Na nova China, o predileto agora é o 8, símbolo de riqueza e prosperidade.
Os chineses levam os números tão a sério que os Jogos Olímpicos de Pequim vão começar às 8 horas e 8 minutos do dia 8 do mês 8 de 2008. Vai gostar de prosperidade assim lá na China!
* Bem-vindo a Pequim
Crônica publicada na Coop Revista - Julho / 2008

Meu velhinho



Meu velhinho
Lucia Sauerbronn
Sinto uma vontade enorme de abraçar meu pai. Não um daqueles abraços banais, que a gente troca quando se encontra. Mas um abraço de verdade, como se eu ainda tivesse dez anos, para mostrar o quanto gosto dele. Tenho medo. Que um abraço vindo do coração pareça despedida.
Ele vai fazer 85 anos. É ágil, lúcido e danado; se comporta como se tivesse 25. Fica todo orgulhoso ao ver que causa espanto quando confessa a idade. Só nessas horas fica vaidoso. Não usa roupas de moda, não se preocupa em disfarçar as rugas e os cabelos brancos. É apenas um velhinho alegre e simpático.
Sua saúde, garante, é resultado de uma dose de vitamina E diária e uma sessão matutina de exercícios para braços e pernas: mais de trezentas flexões cada. Além de um copo de vinho tinto – desses de garrafão mesmo – no almoço, outro no jantar. Fora isso, mantém o coração azeitado: vive apaixonado e nunca esquece de mandar flores e chocolates para a namorada da vez. Esse velhinho independente, que vai sozinho ao médico quando precisa, para não dar trabalho a ninguém, parece que vai durar cem anos.
Falamos toda manhã por telefone, mas quase não vou à sua casa. Eu me acomodo porque ele faz questão de me visitar no trabalho com regularidade. Conversamos por meia hora, não mais: não quer atrapalhar. Diz que compreende que os filhos e netos andem ocupados cuidando da vida. Deve sentir falta, mas não cobra mais atenção de nenhum de nós.
Pelo contrário, é ele quem dá atenção às pessoas que vêm contar seus problemas. No mercado, na feira, na farmácia. Ele ouve, dá conselhos. Tem uma porção de netos emprestados que o chamam de vovô. Vive comprando doces e presentinhos em troca de um sorriso e um abraço.
Para ocupar o tempo, está sempre inventando coisas para fazer, seja reformar o jardim ou trocar o encanamento do banheiro da casa em que crescemos e que dividiu com minha mãe até ficar viúvo. Uma casa cheia de lembranças, onde o mesmo carrilhão marca a passagem do tempo, soando a cada quinze minutos.
Outro dia, descobriu que as portas estavam infestadas de cupim. Decidiu contratar um
profissional para pintar a casa. O homem andava ocupado com outro serviço. Enquanto esperava a vez, pintou dois cômodos.
Pouco a pouco, vai se desfazendo de documentos e objetos guardados nas últimas décadas. Para ele, são coisas inúteis. Como sabe que eu gosto, e porque me causam boas lembranças, traz de presente balões de vidro, balanças e aparelhos antigos, como o microscópio que o vi usar em seu laboratório de análises, de onde tirou o sustento e a educação da família.
Ele me ensinou a andar de bicicleta. A empinar papagaios. A não ter medo de nada nem de ninguém. A respeitar as pessoas. A ter respeito por mim. A sentir alegria de viver, acima de qualquer coisa. Porque, assim como os momentos bons, os ruins também passam.
Ficou sem pai aos três anos. Lutou pela vida. Algumas vezes ganhou. Outras, perdeu. Enterrou uma filha. E minha mãe, depois de uma longa doença, poucos meses antes de comemorar bodas de ouro. Ficou perdido. Levou dois anos para se despedir. Distribuiu suas roupas e objetos pessoais, mandou ampliar fotos das várias fases da vida da moça que conheceu aos 18 anos. Quando acabou, reproduziu as mesmas imagens em tela, que passou a pintar compulsivamente até preencher todas as paredes da sala. Só então deu por completa a cerimônia do adeus. E acordou de novo para a vida. Sem lamentos.
Cuida do pé de pitanga, distribui mudas de orquídeas, poda as roseiras do jardim que eles plantaram juntos e que florescem todos os anos.
O mundo seria bem outro se todos tivessem a sorte de ter – ou ser – um pai assim.
Crônica publicada na Coop Revista - Setembro / 2007

Igualdade feminina



Igualdade feminina
Lucia Sauerbronn
Entretido com o desfile que passava na TV da plasma do shopping, meu marido nem reclamou do tempo que demorei para comprar um par de meias. Estava entusiasmadíssimo com a grande sacada do estilista:
- Olha só! Ele trocou aquelas modelos magrelas por mulheres maravilhosas. O desfile está demais, as roupas caem muito melhor em cima dessas curvas!
Curvas?, estranhei. Desde quando modelos de 1,75 m e 45 kg têm curvas? Pelo que via, aquelas eram as mesmas modelos de sempre. A diferença é que a TV de plasma era tão grande que distorcia a imagem uns 30% na largura. As mulheres por quem ele babava continuavam a ser modelos anoréxicas de três arrobas. Só que, com 30% de gordura virtual, pareciam adolescentes magras de 1,75 m e 60 kg!
Não adiantou meu esforço para ele cair na real. Distraído, meu marido pode ser. Mas de bobo não tem nada. Liberou o cartão de crédito e sugeriu que eu fosse dar mais uma voltinha no shopping.
Suspirei e fui destilar a amargura na livraria, olhando revistas femininas. Havia uma centena delas. Achei esquisito não encontrar nenhuma cantora ou atriz famosa nas capas. Pelo contrário, as mulheres pareciam iguais, como se tivessem saído de uma linha de produção de bonecas. De idade indefinida, todas tinham pele lisinha, sem rugas, pés de galinha, manchas, espinhas, marcas de expressão. Os corpos eram perfeitos, nenhuma gordurinha localizada, estria, celulite... Apesar da cinturinha de pilão e pele de pêssego, consegui reconhecer Hebe Camargo. Pelo tamanho das jóias!
Fiquei deprimida. Pensei no tempo que gasto todas as noites para limpar, tonificar, nutrir e hidratar a pele. Meu primeiro impulso foi correr até o banheiro e atirar pela janela todos os potes de creme da pia. Abrir a geladeira, encher a cara de bolo de chocolate, sorvete, chantilly e deixar o tempo fazer seu trabalho.
Era covardia. Nem com litros de botox, centenas de injeções de colágeno e aplicações de laser; mesmo que me alimentasse só de alface e água, varasse as noites malhando na academia e entregasse o corpo aos melhores cirurgiões plásticos do mundo, nunca mais me atreveria a sair de casa se não fosse de burca.
Antes que tivesse tempo de morrer sufocada pela inveja, lembrei que, desde que aquela jogadora de basquete de beleza duvidosa arrasou nas páginas da Playboy, não se pode confiar em fotografias. Um cliquezinho de mouse aqui, outro ali, os computadores conseguem eliminar até papada de atriz veterana na novela das oito.
Acho que a tecnologia é legal. Televisão vive de imagem. E, se eles encontraram um modo de dar uma mãozinha à natureza, vá lá. Mas e nós, pobres mortais do sexo feminino, seremos obrigadas a nos recolher diante da nossa humilde condição precária diante do espelho?
Somos de carne e osso (ainda que nem sempre nas melhores proporções). A comparação é injusta e nos transforma num bando de mulheres em busca de uma auto-estima que não está na balança nem na mesa de cirurgia.
Hoje, qualquer adolescente vive infeliz porque descobriu uma ruguinha, uma sombra de celulite, e daria qualquer coisa para emagrecer 15 quilos. Até as famosas pelo corpo escultural, em busca desse tal padrão de beleza, perderam as curvas. E o interesse dos homens.
Como se já não bastassem as próteses de silicone, a chapinha e as lentes de contato, a medicina estética anuncia a descoberta de pílulas para eliminar gordura e tratamentos com células-tronco, que tanto podem mudar o formato do quadril como barrar o processo de envelhecimento. Dentro de alguns anos vamos ser todas iguaizinhas à Barbie!
Olhei para o meu marido sentado no banco diante da TV. Meia dúzia de marmanjos espiava o desfile. Para eles, não fazia a menor diferença se aquelas mulheres de proporções perfeitas eram obra divina, distorção de imagem ou resultado da mais alta tecnologia em computação gráfica. E nem isso seria motivo para abandonar as próprias mulheres e suas imperfeições. Cabeça de homem não vê estria, vê fantasia. Baixinha, gordinha, dentuça, até a Mônica tem seu Cebolinha.
Crônica publicada na Coop Revista - Agosto / 2007

O vendedor de biju



O vendedor de biju
Lucia Sauerbronn
A fila da balsa era grande. A paciência, pequena. O calor, exagerado. Eu tinha sede. Muita sede. Ambulantes vendiam cocada, bananada, paçoca, amendoim. Água que é bom, nada. Tinha acabado. Até o estoque dos bares. Foram buscar noutra cidade. Vinte minutos de ida, vinte de volta. E eu não era camelo. Sabe como é, eles explicavam. Fim-de-semana esticado, sem previsão de trovoada nem chuvisco...
O que é que eu tinha de inventar de ir à praia? Porque o mundo inteiro tinha resolvido ir à praia?
O vendedor chegou de mansinho. Assustei. Ele pediu desculpas. Eu, água. Não tinha. Tinha biju.
Naquele calor de cão, a última coisa que eu precisava era biju enxugando as últimas gotículas de saliva da garganta ressecada. Não, obrigada.
Ele compreendia. Num calor daqueles, casquinha de biju não gruda só na garganta. Se cai na pele suada dá uma coceira danada. Por isso ele gostava de ensinar como comer biju sem deixar cair as migalhas.
A senhora rasga o saquinho fazendo com corte reto na parte de cima. Assim. Depois sopra dentro como se fosse um balão. Aí coloca debaixo do queixo. Pronto! Todas as migalhas caem dentro do saquinho.
Fiquei tão atenta em acompanhar a explicação da bandeja improvisada que, quando dei por mim, tinha comido um biju inteirinho.
O gosto do biju me trouxe boas lembranças. Quando criança, o clec-clec da matraca do bijuzeiro era o sinal para eu chacoalhar meu cofrinho em forma de porco. Tirar umas moedas a tempo de alcançar o vendedor. Quase pude ouvir minha mãe gritando da porta para eu ir devagar. E não atravessar a rua. Distraída, aceitei o segundo biju. Estava delicioso.
Enquanto mastigava o terceiro, ele explicou que aquele não era um biju qualquer. Tinha sabor especial. Além de ingredientes selecionados e muita higiene, era feito com amor. Ele mesmo preparava, seguindo a receita que aprendeu com a avó. Uma massa à base de açúcar, farinha e água, assada como panqueca bem fina, depois enrolada. E me ofereceu mais um. Estava crocante.
Asso de madrugada e espero esfriar bem antes de pôr no saquinho. Se abafar, fica chocho. Pior que biju abafado só biju passado. O meu é sempre fresquinho. Direto do produtor para o consumidor.
Gostoso mesmo, concordei. E aceitei o quinto.
É tão bom que vendo tudo no mesmo dia.
Olhei para o saquinho de migalhas. Segundo ele, do biju nada se perde. As migalhas que viram paçoca. Em pedaços, é bom de mergulhar no leite adoçado. Amassadinho como farofa, torna o sorvete e a salada de frutas mais gostosos.
Tenho três mil clientes, turistas, gente com casa na ilha. Eles não passam por aqui sem levar pelo menos um pacote. O que comprova a qualidade do meu produto.
Alguém chegou com a água. Quase de um único gole, tomei toda a garrafa, que ele mesmo abriu:
Cortesia da casa, para virar freguesa. A senhora é minha cliente 3001!
Olhei para ele. Fora a roupa branquinha, seu aspecto era o mesmo de todos os ambulantes e pedintes, que exageravam a cara de coitados. Compra para ajudar minha família (eu nem conheço!). Compra porque eu estou desempregado (e se eu estiver também?). Pelo menos estou vendendo, não roubando (mas a esse preço?). Argumentos que exploram nossa compaixão e levam a comprar por puro sentimento de culpa.
Ele, não. Era um estrategista. Um homem de marketing.
Não pude deixar de pensar. Se aquele rapaz tivesse recebido o que toda criança merece – alimento, saúde, casa, escola, família estruturada –, dentro de poucos anos seria um dos mais festejados publicitários do país. Lamentei a quantidade de talentos que o Brasil perde. Crianças esquecidas em bairros miseráveis como aquele, sem chance de futuro.
A balsa chegou. Antes de embarcar, fiz as contas. Seriam seis pessoas em casa. Um pacote para cada um, mais o que comi, sete.
Não, a senhora só paga seis. O primeiro foi demonstração.
Paguei. Agradeci. Sorri. E ele nem cobrou pela aula de marketing.
Crônica publicada na Coop Revista - Julho / 2007

Da janela



Da janela
Lucia Sauerbronn
Todas as manhãs, quando passo, ela está na janela. O edifício fica numa rua central e dá de frente para outra, perpendicular. Além dos cem metros que seus olhos alcançam à direita e dos outros cem, à esquerda, ela enxerga um corredor de lojas, consultórios e estacionamentos. Observa o movimento de automóveis e de pedestres, uns carregados de sacolas, outros trazendo uma criança pela mão. Mesmo assim, acho perverso dizer que ela desfruta, do alto de sua janela, de uma vista privilegiada.
Fossem outros os tempos, talvez aquela janela mostrasse a alegria dos quintais cercados, com crianças observando as formigas ou escavando a terra atrás de minhocas assustadas. Nesses quintais haveria sempre alguém brincando de amarelinha, esconde-esconde, pega-pega, um menino trepado na árvore e uma menina aparando na saia as mangas que o menino – seu primeiro e secreto amor – atirasse lá de cima. Seria capaz de ouvir uma dona de casa implicar com a pelada de rua dos meninos, cuja bola sujasse os lençóis branquinhos, que ela recolheria caso o céu anunciasse temporal.
De manhãzinha seu despertador seria um galo cantando ao longe. E nos dias de sol, veria o alvoroço dos pássaros pintando o espaço em revoada, a sobrevoar os telhados atrás do cheiro das flores e frutas. Quem sabe, teria a sorte de um casal de joão-de-barro escolher sua árvore para construir o ninho, ou colibris cativos dos gerânios de sua janela. Quando a noite caísse, acertaria o relógio para as seis, ao som da ave-maria.
Mas não. Daquele quadrado de vidro, a cena que ela descortina é bem diferente. Nos dias de verão, um clarão tinge o horizonte de vermelho e o sol se levanta de mansinho. A bola sobe leve entre os edifícios, iluminando a silhueta de metal da floresta de antenas, que parecem homenzinhos de braços abertos. Só então ele se dá por completo: redondo, gordo, liso e de raios múltiplos, lavando de amarelo as cores empoeiradas das fachadas, onde as venezianas começam a se abrir aos pares, ou a se levantar solitárias. A bruma se afasta, tornando clara a cidade que acorda.
Lá embaixo, automóveis e pessoas parecem bichinhos: vêm e vão em ritmo ainda lento, arrastando-se pelas ruas e calçadas. Adolescentes seguem para a escola, auxiliares de escritório e comerciários passam consultando o relógio. Poucos são os que ainda se espreguiçam na cama quente. Nas ruas ninguém tem nome e a mulher se entristece: do alto de sua janela, ela também não tem...
Logo os cordões de gente engrossam. Agora todos têm pressa: há alguém querendo um cinto, um vestido, um documento; há um sapato a ser consertado, uma dor de dentes, um relógio quebrado, um homem precisando de um trago. Há uma mulher preocupada com o almoço, uma criança que pede sorvete, um homem sisudo, um guarda de trânsito tentando organizar a confusão. Há alguém atrasado e outro, irritado, que espera. Há uma moça que perde a esperança num leito de hospital. No quarto ao lado, alguém ergue um brinde ao bebê recente. Num andaime, o rapaz assenta o tijolo pensando ser semente; outro martela um batente. É preciso produzir, as buzinas se impacientam, o ronco dos motores abafam os suspiros.
Surpreendo a mulher na janela com o dedo nos ouvidos, tentando, quem sabe, sentir o som ritmado do próprio coração. Eu a imagino buscando o silêncio numa sala vazia: os móveis limpos, o chão encerado, a toalha de crochê sobre o aparador, a samambaia que pende do vaso, o casal de cisnes de vidro na mesa lateral. Vejo que ela não me vê, e não a culpo: sou apenas mais um dos pontinhos que ziguezagueiam cá embaixo. Apenas lamento que ela não seja capaz de ouvir meu bom dia envergonhado.
Crônica publicada na Coop Revista - Agosto / 2008

quarta-feira, 24 de junho de 2009

PARE O MUNDO QUE EU QUERO DESCER



PARE O MUNDO QUE EU QUERO DESCER
Lucia Sauerbronn
Troco de roupa falando ao telefone, escovo os dentes calçando os sapatos, tomo café lendo o jornal e termino a maquilagem enquanto espero o semáforo abrir. Fujo do trânsito por ruas alternativas escolhendo caminhos entre os buracos. De longe, distingo uma vaga. Suspiro. O carro da frente chega antes. Para conseguir estacionar, preciso dar três voltas no quarteirão.
No trabalho, falo ao telefone lendo e-mails, atendo pessoas guardando pastas, rabisco anotações para não esquecer de fazer o que deveria ter feito ontem. Penso em meia dúzia de coisas ao mesmo tempo, falo três de uma vez só, atropelo os passos, esbarro nas cadeiras e derrubo café nos documentos que deveria assinar.
Termino o relatório que levei horas para fazer. Fecho a tela sem salvar o trabalho. Escarafuncho, desesperada, o computador, tentando restaurar o texto perdido. Inútil. Recomeço do zero.
Saio voando para casa. Estou atrasada, é claro. Por isso, o almoço vai sair mais tarde. A empregada está com problemas pessoais e pede ajuda. Fico pouco em casa, é ela quem resolve tudo, me sinto em dívida. Dou atenção, procuro ajudar. Depois do papo, mais aliviada, ela emenda: a despensa está vazia, é hora de fazer as compras. E me estende a lista.
Nem bem sento à mesa, o telefone toca. Meu marido reclama: os amigos sabem que só me encontram em casa nesses poucos minutos em que deveria estar com ele. Engulo o almoço frio e a cara feia da família, que já está na sobremesa.
Meu pai protesta: há uma semana não apareço. Telefono todos os dias, culpa de filha é de doer o coração e tirar o sono. Quem sabe, amanhã, depois do trabalho...
Ainda bem que tenho a tarde pela frente. Ah, as belas tardes de outono, com sol e brisa gostosa, tardes tão boas para andar a pé, olhar as pessoas, chutar pedras no caminho. Mas à tarde tem reunião no escritório, o projeto que precisa ser entregue hoje, o texto que ainda não concluí, as contas para pagar.
Ah!, e o pintor que vai fazer o orçamento do serviço lá de casa, não posso esquecer. Falando em esquecer, não é hoje o aniversário da Sueli? Preciso mandar flores. Não, melhor comprar um presente, dar um pulo até lá, levar um abraço. Mas hoje à noite tem reunião de condomínio, como é que fui aceitar essa incumbência? No mesmo horário da aula de francês, mon Dieu, c'est terrible!, a terceira falta deste mês. E eu que pensava chegar em casa cedo e terminar de ler aquele livro.
Não sei o que deu nas cabeças da mulheres, trocar a doce vidinha doméstica por essa alucinação toda. Às vezes, sinto vontade de jogar tudo para o alto e curtir o lar, doce lar. Ter tempo de olhar vitrines, ir ao cabeleireiro. Mandar tudo às favas e pegar um cineminha no meio da semana.
Mas agora é tarde. A gente assume compromissos... Falando nisso, não sei por que estou aqui divagando, essa crônica deveria ter sido entregue ontem.
À beira de enlouquecer, acho que seria mais fácil se o dia tivesse 36 horas. Mas não acredito que fosse adiantar. Tenho mania de querer abraçar o mundo. Iria pedir meia hora a mais.
Nessa neurose de querer me superar, não perdôo, busco a perfeição: um dia ainda chego antes de mim.
Crônica publicada na Coop Revista - Junho / 2007

Velhos Caretas



Velhos caretas
Lucia Sauerbronn
Bebê dá muito trabalho. Troca o dia pela noite, tem dor de barriga, de dente, de ouvido. Faz cocô nos colos mais impróprios. Ninguém se importa. Pelo contrário, não cansam de elogiar aquela gracinha que tem os olhos da vovó, o furinho no queixo do vovô, a bochecha do papai, a boca da mamãe e que, por tudo isso – ou mesmo que não seja nada disso –, é o bebê mais lindo do mundo.
Todo dia ele aparece com uma novidade. A família comemora o primeiro de tudo: sorriso, dente, abraço, passo, palavra... Mas o bebê logo se torna independente e começa a fazer arte pela casa. Quebra vaso, mastiga remédio, engole moeda, derruba detergente no olho. A família inteira corre pro pronto-socorro. Quase sempre é só susto. São e salvo, o pimpolho ganha milhões de abraços e beijinhos. Mas ninguém lembra de agradecer ao anjo da guarda esforçado.
Encantados com o milagre de gerar a vida, os pais prometem ser compreensivos e cuidadosos. Mesmo esgotados com a energia de pilha duracell dos baixinhos, jamais perderão a paciência. Serão os melhores pais do mundo. Não vão repetir erros dos próprios pais.
Mas criar filho direito dá um canseira danada. Tem que acompanhar a lição, comparecer às reuniões da escola, ao jogo de futebol, à apresentação de balé, ensinar as diferenças entre certo e errado, ser carinhoso na medida certa e duro na hora que importa. Abraçar, beijar e fazer as vontades, mas também dar bronca e pôr de castigo. Mesmo que seja para depois morrer de culpa com medo de ter exagerado.
Até completar uns dez anos, crianças são sempre maravilhosas. Enquanto descobrem o mundo, fazem as perguntas mais desconcertantes. Aos 13, são perfeitos pestinhas. Mas como somos seus heróis, perdoamos todas as travessuras e malcriações.
Porque o pior está por vir. E o pior – argh! – atende pelo nome de adolescência. Aquele que, até outro dia, era nosso doce bebê se recusa a tomar banho. Se for menina, ao contrário, não sai da frente do espelho. Passa o dia trancado no quarto, com o som tão alto que é capaz de o vizinho chamar a polícia. Não desgruda da turma, que a qualquer momento pode invadir a casa e esvaziar a geladeira.
Nosso ex-doce bebê fica horas na internet. A conta do celular pode sustentar uma família inteira. Só veste o que quer. E o que quer nos causa arrepios. Acha que é dono do próprio nariz. E – por que não? – do mundo. Aquela criança esperta, que aprendia depressa, agora passa de ano aos trancos e barrancos. Há sempre alguma coisa mais interessante para fazer do que estudar. Não nos convencem. Batemos pé firme: a escola é que vai garantir o seu futuro.
Os perigos estão sempre rondando e tiram o sono de qualquer pai: drogas, bebida, violência, internet, sexo precoce, gravidez fora de hora. O adolescente, ao contrário, não tem medo de nada. Acha que é imortal como um super-herói. E que problemas só acontecem com os outros. Tenta agir como adulto e adora conversar, desde que não seja com um adulto de verdade. O que nos exclui de qualquer espécie de diálogo.
Ricos ou pobres, trabalhamos feito loucos para pagar suas contas. Seja para alimentar aquela fome insaciável ou comprar material escolar, o tênis que ficou pequeno, a calça da moda, o videogame, o cinema, a balada e até o presente do ficante (porque hoje eles não namoram: ficam).
Ultrapassados como um carro fabricado nos anos 60, passamos a ser os piores pais do mundo. Somos criticados pelo modo de falar e vestir. Nossas opiniões já não têm valor. Conselhos, então... Humilhados, ainda temos de pedir ajuda aos espertinhos para ligar o DVD, gravar a agenda no celular e acessar a internet emperrada.
Até que encontram trabalho ou vão para a faculdade. Se tivermos sorte, as duas coisas juntas. E assumem novos ares. Conquistam vitórias no emprego. Mudam de cidade ou só aparecem para dormir. A casa fica vazia. Silenciosa.
Um dia aparecem com alguém que fazem questão de apresentar. Os pais se entreolham como se, naquele momento, percebessem que seu bebê virou adulto de verdade. Se tudo correr bem, mais dia, menos dia, ele vai casar ou morar junto, não importa. O que importa mesmo é quando ele anuncia que vai ser pai. O que nos transforma imediatamente em avós.
E, como todos sabem, avós são infinitamente melhores que pais.
De uma hora para outra, meninos e meninas danados assumem o ar severo de quem se ocupa em criar a próxima geração. E próxima geração quer dizer bebês que trocam o dia pela noite, têm dor de barriga, de dente, de ouvido, fazem cocô nos colos mais impróprios. Encantados com o milagre de gerar a vida, nossos filhos prometem ser os melhores pais do mundo. E de fato são. Iguaizinhos a nós, que fomos iguaizinhos aos nossos pais, que foram iguaizinhos aos nossos avós, que foram iguaizinhos...
E nós, velhos caretas? O que podemos fazer, se o mundo muda o tempo todo, mas continua sempre igual?
Bem, disfarçando um sorrisinho irônico, abrimos a porta de casa e deixamos aqueles deliciosos pestinhas fazer todas as diabruras e travessuras que desejarem.
Crônica publicada na Coop Revista - Maio / 2.007

Tudo pelo visual



TUDO PELO VISUAL
Lucia Sauerbronn
Toda mulher sabe que, a partir de uma certa idade, o espelho é seu pior inimigo. O meu, que não é mágico como o da Rainha Má da Branca de Neve, anda mostrando que os potes de creme já não surtem o efeito desejado contra a lei da gravidade, que ensina que tudo cai.
Antes de recorrer a uma plástica radical, encontrei numa revista a solução menos drástica para atenuar minhas marquinhas impertinentes. A partir dos estudos de Leonardo Da Vinci sobre anatomia, uma americana desenvolveu uma série de exercícios para amenizar os traços do tempo, com o sugestivo nome de ginástica facial. Que maravilha! Nem precisaria ir à academia, dava para fazer os exercícios em casa mesmo.
Segundo o texto, o objetivo da ginástica facial é fortalecer e tonificar os 33 músculos do rosto, que, relaxados, tornam a expressão mais suave. Bastava completar o programa de rejuvenescimento com o cuidado de não enrugar a testa ao ficar preocupada, não franzir os olhos diante da luz e procurar sorrir apenas levemente, mesmo diante da piada mais engraçada. Eureka! Aquela matéria desvendava um enigma que há cinco séculos vinha intrigando estudiosos das Artes e Ciências: o sorriso da Mona Lisa. Ao ser imortalizada na tela pelo velho Leo, Gioconda apenas obedecia aos seus ensinamentos: para ser eternamente jovem é preciso manter a expressão calma e serena.
Entusiasmada com a descoberta, segui lendo a matéria, procurando diante do espelho memorizar cada exercício: “Para prevenir e corrigir pálpebras inchadas, suavizar pés-de-galinha e evitar a retração do globo ocular, erga as sobrancelhas, arregalando os olhos até ver o branco acima da íris. Fixe o olhar num ponto e permaneça nesta posição, sem piscar, até olhos arderem. Gire devagar o globo para a direita, depois para a esquerda. Feche os olhos, apertando-os bem. Erga as sobrancelhas, esticando as pálpebras o máximo que conseguir”.
Até que não era difícil. Se surtisse efeito, em pouco tempo acabaria com aquele ar de quem passou a noite na farra, mesmo depois de dormir 8 horas. Fui para o segundo exercício: “Para evitar flacidez das maçãs do rosto, cantos da boca caídos e suavizar as rugas que vão do nariz até a boca, abra-a o máximo que puder, como se estivesse dando uma gargalhada. Force os cantos da boca para cima. Tente fazer um sorriso ainda maior enquanto diz cinco vezes: ‘rá rá rá’”. Fiquei parecida com o Curinga do filme Batman. Soltei a voz numa gargalhada, me sentindo um pouco ridícula. Desfiz rapidamente a máscara do riso e parti para o passo seguinte:
“Para suavizar as rugas verticais em torno da boca e tonificar a musculatura dos lábios, coloque uma rolha entre os dentes na posição vertical e force o lábio superior em direção ao inferior, tentando juntá-los. Tome cuidado para não formar rugas verticais em torno da boca durante o exercício. Deixe que os lábios voltem à posição normal, escorregando através da rolha.”
Tentando desengasgar, pensei em escrever uma carta à redação, alertando que seria melhor avisar as leitoras de que a rolha pode escorregar na direção contrária, o que não surte o menor efeito em favor das rugas. Expressões de dor e desespero são inúmeras vezes mais perniciosas que as de alegria, coisa que ninguém, em sã consciência, sentirá ao tentar remover a rolha entalada na garganta.
Refeita, segui adiante: “Para prevenir e evitar queixo duplo e flacidez na mandíbula, coloque a língua esticada no céu da boca, abra e feche a boca devagar, com a língua na mesma posição”. Essa era fácil. Finalmente, “para prevenir e suavizar as rugas verticais e horizontais da testa e o caimento das sobrancelhas, testa e pálpebras, franza as sobrancelhas o máximo que puder (como se estivesse preocupada). Erga-as e abra os olhos até ver o branco da íris. Repita cada exercício cinco vezes”.
Eu estava tão entretida em seguir à risca cada movimento que nem percebi que era observada pela família, reunida na porta do quarto. Diante do ar estupefato dos homens da casa, tentei explicar que, de modo algum, a culpa era deles. Dizer que me deixavam louca com suas exigências era força de expressão. Eu estava fazendo apenas alguns exercícios para não ficar enrugada.
Decidida a não traumatizá-los, achei melhor não fazer os exercícios em casa. Mesmo vaidosa, uma mulher jamais deve pôr em risco a sanidade da família. No dia seguinte, encontrei a solução: gasto meia hora para ir e vir do trabalho. Por que não aproveitar melhor esse tempo desperdiçado nos semáforos e congestionamentos e fazer caretas diante do espelho retrovisor?
Como aluna aplicada, faz um mês que repito diariamente as sessões de ginástica facial através das ruas e avenidas da cidade. De vez em quando alguém me olha espantado. Principalmente quando chego naquela parte do “rá rá rá”. Mas descobri que, no meio do trânsito caótico, um maluco a mais não faz a menor diferença.
Crônica publicada na Coop Revista - Setembro / 2.008

Isso é Brasil


Isso é Brasil
Lucia Sauerbronn
O Japonês da tinturaria batia ponto toda terça-feira de manhã lá em casa. Tivesse ou não roupa para lavar. O Português da padaria era legal comigo. Gostava de conversar enquanto cuidava do caixa e sempre me dava umas balinhas de mel, que eu adorava.
Do outro lado da rua, tinha o Judeu da sapataria, que um dia me salvou das rodas de um carro. Ele teve câncer de garganta, por isso vendeu a sapataria para o Turco, que era chaveiro.
Quando faltava alguma coisa na cozinha, minha mãe mandava eu dar um pulo na mercearia do Italiano. Se sobrasse troco, às vezes me deixava comer o pastel do Chinês ou uma esfiha no Árabe. Se desse sorte, talvez ainda sobrasse um dinheirinho para me lambuzar com uma torta de creme na doceria do Alemão.
Eu costumava brincar na casa das Espanholinhas. Elas moravam em cima da loja de tecidos dos pais. Na mesma rua ficava a borracharia do Negão, cuja filha era imbatível nas partidas de vôlei. Eu não desgrudava da Japa, dona de uns lindos olhos puxados. A Índia, que nunca mais vi, também estudou comigo e deve ter se tornado uma morena de cair o queixo.
Mais tarde casei com o Ruivo. Quando meus filhos nasceram com a cara do pai, passei a ser apontada como a mãe dos Enferrujadinhos. Criança, eu era a Branca de Neve. Por sinal, o mesmo apelido do melhor jogador de pelada da rua. Por motivos opostos.
Todos tivemos amigos conhecidos por Baixinho, Boca, Bola 7, Girafa, Cabeção, Bolota, Dumbo, Tampa, Galocha, Pé Grande. As relações eram mais simples. Ninguém ficava chateado por ser identificado pela origem, cor, característica física, personalidade ou profissão. Apelidos eram comuns. Não causavam trauma nem mágoa. Não embutiam maldade nem preconceito.
Hoje tudo isso seria absurdo. Politicamente incorreto. É claro que acho justo tomar cuidado com as palavras para não ferir ninguém. Mas palavras são menos perigosas do que pensamentos e atitudes.
Preconceito é impedir as pessoas de viver onde elas desejam, circular por onde bem entenderem, ter a profissão que escolherem e os mesmos direitos de qualquer cidadão.
Nos anos 70, era moda ter o corpo bronzeado. As meninas passavam horas tostando no sol. Eu poderia considerar uma ofensa ser chamada de Branca de Neve. Mas eu era branca como a neve! Sobrevivi ao apelido, sem ter vergonha de mim mesma.
Eu me sentiria ofendida, sim, se, ao invés de um curto e auto-explicativo Branca de Neve, passasse a ser chamada de euro-descendente. Pura hipocrisia. A expressão embute a intenção de não ofender. E isso é que é prá lá de preconceituoso.
O Brasil foi formado por portugueses, índios e escravos. No século passado, recebeu, de braços abertos, imigrantes de muitas outras origens. Convivemos com as diferenças. Aprendemos com elas e fomos esquecendo equívocos de um passado do qual não podemos ser culpados e que cada vez fazem menos sentido.
Em muitos países, o preconceito de raça e credo gera ódio, humilhação, disputas e guerras que não têm mais fim. Aqui as raças se misturaram. Em breve seremos todos mulatos. Brasileiros, graças a Deus.
Crônica publicada na Coop Revista - Abril / 2.007

Mulheres Adulteradas



Mulheres adulteradas
Lucia Sauerbronn
Perdi um tempão limpando a caixa de e-mails. Tá certo. Tem coisa legal. Mais ou menos uns três por cento. O resto é lixo eletrônico. Odeio aqueles com letrinhas que caem em conta-gotas. Fico socando a tecla enter para ver se a frase aparece de uma vez. Não resolve nada. Sou obrigada a ler no ritmo que o outro quer. É a ditadura do e-mail!!! Já pensei em entupir a caixa de mensagens desses chatos de plantão com mensagens mais chatas ainda. Mas vai que eles gostem...
Outra coisa que me deixa possessa são aquelas ligações nos momentos mais impróprios para oferecer serviços e produtos que não, eu não desejo, não preciso e tenho raiva de quem... Enfim. Para evitar um ataque de nervos, passei a pedir o telefone do inconveniente e aviso que ligo mais tarde. Sabe o que eles respondem? Que não estão autorizados a receber ligações. E quem foi que deu autorização de ligar para mim?
Pior é tentar falar com uma dessas centrais de atendimento eletrônico. Depois de digitar até o número da carteira de identidade da minha mãe, eles atendem e perguntam tudo de novo. Cáspite! Eu não acabei de fornecer até a data de nascimento do papagaio?
E o trânsito? E o trânsito? Você lá, andando sossegada e tem sempre um perturbado na sua frente. Estaciona em lugar proibido, anda a 20 por hora, bate papo no celular. Isso quando não aparece um maluco de motocicleta achando que tem prioridade de ambulância.
O elevador é outra praga. Nunca está lá quando eu chego. Se estou em cima, ele está embaixo. Se estou embaixo, ele está em cima. Parece que adivinha que sou eu.
Agora, o que me tira mesmo do sério é aquela maldita torneira pingando. Noite e dia, dia e noite. Cansei de pedir para o meu marido chamar o encanador. Mas ele não está nem aí se seu não consigo conviver com aquele barulhinho irritante. Se eu fosse namorada, não mulher, a porcaria da torneira já estaria consertada faz tempo. Ainda se ele soubesse trocar o diabo do courinho, mas quê!, ele não troca uma lâmpada em casa! Tenho eu que subir na escada, com risco de cair e me machucar toda. Quem sabe, sofrer traumatismo craniano e passar a vida entrevada numa cama de hospital. Ou até morrer! Ah, mas vai ver que é isso o que ele quer, seria um jeito bem fácil de se livrar de mim. Deve estar cansado da minha cara.
No mínimo, o mal-agradecido tem outra. Bem mais nova. Ele pensa que só eu envelheço? Será que não usa espelho? No começo de casados, era uma maravilha. Benzinho para cá, presentinho para lá. Um tal de telefonar o dia inteiro só para ouvir a minha voz e dizer que não via a hora de me encontrar. Agora? Chega em casa, dá um beijinho mixuruca e corre amassar o traseiro naquele maldito computador. Diz que quer ler as últimas notícias e ver o resultado do futebol.
Sei. Vai ver tem uma namorada virtual. Já tentei pegar em flagra um milhão de vezes, mas o sem-vergonha deve ter um jeito de fazer a tela mudar para a tabela do campeonato brasileiro quando me aproximo. Como é que ele faz uma coisa dessas comigo? Justo eu, que viro gato e sapato para agradar? Ele não tem uma camisa sem botão, nunca deixo faltar o suco que ele gosta, sempre que posso vou para a cozinha preparar bolo de chocolate, uma de suas paixões. Além da daquela vagabunda virtual, é claro, eu sou mesmo uma idiota.
Mas de hoje não passa. Ele tem que me contar tudo. Tudinho. Tim-tim por tim-tim. Porque ai, se eu descubro sozinha! Aí é que ele vai saber aonde a porca torce o rabo. A porca é ela, claro. Quebro a casa inteira, era só o que faltava, aquelazinha morando aqui dentro, aproveitando no bem-bom todas as coisas que levamos anos para construir. Veja do que uma mulher é capaz, destruir uma família. Porque vou pedir o divórcio.
Se ele não quer ficar comigo, que não fique. Nós não nascemos grudados! Já disse um milhão de vezes. Pego minhas coisas e sumo da poeira, ele vai ver só. Usou e abusou dos melhores anos da minha vida. Mas ainda não sou de jogar fora. Deve ter alguém por aí disposto a me amar. Tem sim. Alguém romântico, que mande flores, dê presentinhos. E um pouco de colo quando eu precisar. Porque ele nunca mais falou que me ama. Se não fala é porque não ama mesmo. Acho que nunca amou. É que é uma moleza, ter a mulherzinha em casa e sair por aí tendo casos virtuais, se é que são virtuais, o que duvido. Aliás, nem duvido mais.
Já disse tudo isso para ele no mês passado. E em todos os meses anteriores. Mas eu sou boba. Falo, falo e depois deixo para lá. Mas não dessa vez. Ah, não. Sou até capaz de me matar. Mas imagine se vai sair barato: vou escrever uma carta bem comprida, dizendo tudo o que sei e ele pensa que não sei, que é para ele ter que carregar o remorso para o resto da vida. Digo isso para ele. Já disse mil vezes.
Sabe o que ele responde? Nada. Não responde. Fica só ouvindo, ou finjindo que ouve, enquanto assiste ao telejornal.
E basta a moça encerrar o telejornal com um boa noite que ele repete sempre a mesma frase:
Então, meu bem, vamos dormir, que amanhã a TPM passa.
Crônica publicada na Coop Revista - Março / 2.007