quarta-feira, 18 de agosto de 2010

É proibido fumar



É proibido fumar

Lucia Sauerbronn
Não há nada mais desagradável do que cheiro de cinzeiro. A fumaça do cigarro empesteia os cabelos, as roupas, a casa, o carro, o local de trabalho. Quem fuma tem os dentes amarelados. A nicotina mancha também dedos e unhas. A pele perde o viço, enruga e envelhece mais cedo. Nos homens, causa impotência. Nas mulheres grávidas, diminui o peso do feto. Dizem que o cigarro tem inúmeros produtos tóxicos, até veneno de rato. Imagine o estrago que faz quando a gente aspira esse lixo todo e ele se espalha através do sangue, envenenando cada célula do corpo. Quem não fuma, mas convive com fumantes, corre os mesmos riscos. Fumar é altamente perigoso. O cigarro vicia. E até mata.
O álcool causa um rombo enorme na economia. E não é só o que se gasta com o tratamento dos dependentes. Por conta do álcool, muita gente perde o emprego, a autoestima, o convívio social e a família. A bebida destrói os neurônios, acaba com o fígado (que às vezes precisa de transplante), compromete o futuro emocional de milhões de crianças e é responsável pela grande maioria das agressões domésticas. Motoristas alcoolizados causaram 84.684 mortes só no segundo semestre do ano passado. E isso em plena lei seca.
Os automóveis lançam na atmosfera gás carbônico. Cada ser humano é responsável pela emissão de 4,22 toneladas de dióxido de carbono por ano. Respirar nos grandes centros urbanos não é só um problema do homem metropolitano. O CO2 resultante da combustão de petróleo, mais o enxofre da queima de carvão e outros gases presentes na atmosfera, provocam a chuva ácida, matando plâncton, insetos, peixes e anfíbios. Todos os frutos do mar estão carregados de chumbo, mercúrio e outros metais pesados.
O solo do planeta está contaminado por fertilizantes altamente tóxicos. Que penetram nos lençóis de água subterrâneos, que vão para os rios. Que seguem até represas e chegam às nossas casas através de torneiras. Água que usamos para beber e cozinhar. Para alimentar a população mundial de mais de 6 bilhões de almas, carne, frango, leite, frutas e verduras fresquinhos têm uma carga enorme de hormônios e produtos químicos.
A camada de ozônio esburacou por causa dos gases emitidos pelas indústrias que produzem cada alfinete consumido. Toda a madeira que usamos em móveis, papel e até numa romântica e inocente lareira significa a morte de árvores. Por conta do desequilíbrio ecológico, inúmeras espécies de plantas e animais estão sendo extintas. Só a população bovina é que não para de crescer. São 3,2 bilhões de vacas, carneiros e cabras expelindo gás metano enquanto fazem a digestão. Essa verdadeira bomba gasosa atravessa a atmosfera e impede que parte do calor que incide sobre o nosso planeta seja liberado de volta para o espaço. O pum dos ruminantes é responsável por um quinto do aquecimento global. O que leva o gelo das calotas polares a derreter. Muitas cidades correm o risco de ser engolidas pelo oceano.
A Amazônia está sendo destruída para aumentar a criação de gado e o cultivo de soja. Além de abrigar a maior variedade de toda a flora e fauna, as florestas promovem a umidade necessária para a formação de nuvens de chuva. Como consequência, algumas áreas do planeta estão virando desertos. A humanidade pode morrer de sede.
Fiquei tão preocupada que acho que vou acender um cigarro para relaxar...

Crônica publicada na Coop Revista - Setembro / 2.009

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Chá da tarde



Chá da tarde

Lucia Sauerbronn
A visita das tias era sempre um bom motivo. Mas podia ser uma vizinha, a comadre, a mãe de um de nossos colegas ou a amiga que encontrou na feira. Pela agitação de minha mãe, a gente logo percebia que a tarde ia fugir da rotina. Nem bem o almoço terminava, o barulho dos pratos era substituído pelo da batedeira, onde os ovos iam sendo misturados com açúcar, leite, farinha, fermento e suas mil variações: baunilha, raspas de limão, suco de laranja, chocolate, banana caramelizada, fubá com erva-doce. Antes que eu tivesse tempo de terminar de lamber os restos de massa da tigela, o cheiro de bolo assado já tomava conta da cozinha.
Com a precisão de quem sabe o que está fazendo, minha mãe tirava a toalha de algodão adamascado da gaveta, passava água nas xícaras e pratinhos de porcelana e punha no fogo a chaleira para o chá. Só então ela ia trocar de roupa, passar batom e esperar pela convidada, que, para nossa alegria, vinha sempre acompanhada dos filhos. Na meia hora seguinte, em volta da mesa, as mulheres falavam da educação das crianças, dos preços que andavam pela hora da morte, da costureira fantástica que tinham descoberto e trocavam receitas, enquanto nós dávamos fim ao bolo até as migalhas.
Com a chance de participar da conversa dos adultos, mesmo que como meros ouvintes, as crianças procuravam obedecer a todas as recomendações da mãe: comer de boca fechada, não avançar na comida, falar baixo e não rir na mesa, com medo de sermos obrigadas a ir brincar no quintal. O cuidado era inútil. Exatamente quando o assunto ficava mais interessante, alguém avisava que tinha gente descalça por perto. E não adiantava correr enfiar os sapatos. Aquele era o código para tirar as crianças da cozinha, sinal de que as confidências iam começar.
Enxotados, humilhados e frustrados, brincar era a última coisa que algum de nós pensava em fazer. Tudo o que a gente queria era descobrir que segredos se escondiam atrás da porta trancada a chave. Mesmo encostando o ouvido na madeira e pedindo silêncio, era impossível identificar qualquer sentido entre uma e outra palavra sussurada, mistério que só anos mais tarde consegui decifrar.
Aqueles encontros inocentes eram, na verdade, um álibi. Entre frases e risos abafados, xícaras de chá e pedaços de bolo, nossas mães espantavam seus medos e fantasmas. No começo dos anos 60, com a descoberta da pílula anticoncepcional, o mundo virava de cabeça para baixo. Mas tudo o que se relacionava a sexo era ainda um tabu tão grande que elas precisavam reunir coragem até para ir à farmácia comprar um pacote de absorventes. Com exceção da coluna A arte de ser mulher, que Carmem da Silva – primeira jornalista brasileira a abordar o feminismo – assinava na Revista Cláudia, o assunto não podia ser tratado nem mesmo com o padre. A cozinha era o único porto seguro onde as mulheres revelavam seus desejos e angústias. Evitar a gravidez, ter prazer no sexo, usar calças compridas: tudo isso não feria a religião, a moral e os bons costumes?
Com medo que seus segredos fossem parar na boca do povo, elas apelavam para uma tática. Contavam a própria história como se tivesse sido ouvida da boca da prima de uma vizinha da tia, que morava em outro estado. Isso tornava impossível apurar se o fato era real e deixava todas à vontade para dar palpites sobre o assunto.
O chá terminava por volta das cinco, quando a porta era finalmente reaberta. Com o rosto afogueado, aquelas mulheres, cujas revelações íntimas tornaram cúmplices e mais amigas do que antes, falavam alto tentando aparentar naturalidade. Agarrando os filhos pela mão, trocavam beijinhos rápidos de despedida. Era hora de voltar para casa, vestir o avental e preparar o jantar para a família, como se não levassem no peito um vulcão de emoções.
Hoje, quando vejo a intimidade dos casais escancarada nos programas de TV e o sexo vulgarizado, sinto saudade daquelas tardes secretas. Graças às nossas mães, não temos vergonha do próprio corpo e conquistamos o direito de assumir nossos desejos. As mulheres de hoje são modernas, desprovidas de tabus, preconceitos e se sentem à vontade para falar de seus relacionamentos até diante das crianças, sem chá nem bolo e com as portas escancaradas. Não nos falta liberdade. Talvez apenas um pouco de açúcar e de afeto.

Crônica publicada na Coop Revista - Outubro / 2.009

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Amor é bom pra cachorro



Amor é bom pra cachorro

Lucia Sauerbronn
De pelo preto e amêndoa, cheirando a banho e de lacinho no topete, ela era a Milou em miniatura. Tremendo como coelhinho assustado, assim que me viu escalou meu casaco feito uma macaca e se aboletou dentro da gola. Atravessei a cidade dirigindo com aquela criaturinha enroscada no meu pescoço. Apesar do incômodo, eu estava feliz. Fazia um ano que a Milou tinha nos deixado. Foi muita sorte encontrar outra fêmea tão meiga e carinhosa para nos fazer companhia.
Escolhemos um nome pequenino como ela: Gigi. Na mesma tarde, teve uma grave crise de tosse. A veterinária elogiou os bons modos da mocinha, que tomou injeção sem reclamar. Exatamente como a Milou!
Ou quase. Na manhã seguinte, acordou recuperada. E com a pilha toda. Nosso primeiro passeio foi uma visita ao canteiro florido que guardava os restos mortais de nossa antiga companheira. Enquanto eu me ocupava das apresentações, Gigi fez cocô e mastigou as flores do canteiro. Perdoei a falta de respeito. Ela ainda era um bebê. Talvez quando crescesse, tomasse jeito. Ao invés de brigar, peguei a danada no colo e enchi de beijinhos.
Nada como um novo amor. Desde que não a gente não o compare com o antigo. Logo descobri que não se deve confiar num focinho bonito. O tempo iria mostrar que de Milou ela não tinha nada.
Para começar, odeia lacinhos. Arranca com as patas e come. Por sinal, come qualquer coisa, de ração a pé de mesa. Ontem, mordeu pimenta e saiu cuspindo pela casa. Já engoliu botão, miçanga de almofada e moeda de um centavo. Outro dia, arranquei de sua boca um caco de vidro. Por conta desse apetite voraz, de vez em quando tem dor de barriga e choraminga feito bebê. Só passa quando a coloco dentro da blusa e ela se acomoda colando a pele na minha. Também teve pulga e carrapato porque adora meter o focinho aonde não é chamada, quando a levo para passear. Se é que se pode dizer que eu a levo para passear. Gigi faz questão absoluta de escolher o caminho. Empaca feito burro se insisto em ir para outro lado.
Toda manhã me acorda com uma crise de tosse. Já está curada, mas tosse para chamar atenção. Ando pela casa com a pestinha agarrada à calça do pijama. Enquanto tomo banho, ela mastiga meu chinelo. Eu me visto e ela briga com a própria imagem no espelho, que já está todo arranhado. Não tenho mais tênis com cadarços, nem abajur que funcione, pois ela faz os fios de chiclete. Cada vez que quero mudar o canal da TV preciso levantar do sofá e ir até o aparelho. Ela roeu o controle remoto. E não adianta brigar. Na língua dela, não quer dizer sim. E não está nem aí para bronca e cara feia.
O que ela detesta mesmo é ficar sozinha. Quando saio para trabalhar, se enfia porta afora, querendo ir junto. A Conceição, que trabalha lá em casa, tem de ligar o rádio para convencê-la a ficar. Então, ela se ajeita no meio da pilha de roupas para lavar e fica ouvindo música. Se o dia está frio, procura um raiozinho de sol e deita de barriga para cima para se aquecer.
Ela tem uma vantagem sobre a Milou que, quando ficava sozinha, se vingava fazendo xixi no tapete da sala. Experiente, espalhei fraldões para cachorro em cada cômodo. Está certo que ela cheira a beirada da peça, erra a mira e faz fora, molhando o assoalho. Mas tenho fé em Deus que um dia ela acerta. Quem sabe, quando crescer um pouco...
Dois meses e muitos sapatos carcomidos depois, Gigi ainda não sossegou. Tenho me esforçado em tentar domar seus ímpetos adolescentes. Mas quem é que consegue controlar tanta energia? Quando volto para casa, fica tão feliz que pula como uma cabrita. Não é uma vantagem? Em vez de cão tenho um zoológico inteiro.
Gosta de dançar sobre as patas traseiras pedindo colo. Uma vez no colo, me lambuza de beijos e aproveita para arrancar meu brinco. Se a devolvo para o chão, vai buscar seus brinquedos. A bolinha de tênis está esfarrapada. O porquinho está em pedaços. A galinha de borracha ela chacoalha tanto que qualquer dia vai descolar o cérebro. Parece uma maluquinha percorrendo a casa toda, da sala para o quarto, do banheiro para a lavanderia, sem parar nenhum segundo. Enquanto preparo o jantar, ela corre atrás do rabo e resmunga, pedindo pãozinho. Só então vai se aboletar no sofá. Aí a brincadeira é mordiscar minha mão, que já está cheia de furinhos por causa dos seus dentes afiados. Demora para cansar. Mas, quando adormece, parece um anjinho.
Assim quieta, não dá para saber se a bichinha é de verdade ou de pelúcia. É tão pequenininha! Já está uma mocinha, mas acho que nunca vai tomar jeito. Sei que a cupa é mesmo minha. Ela jamais será uma lady como a Milou, que eduquei como filha. É que, com a Gigi, não resisto me comportar como avó.

Crônica publicada na Coop Revista - Julho / 2.010

terça-feira, 6 de julho de 2010

Ora, abóboras!



Ora, abóboras!
Lucia Sauerbronn


Abóbora faz bem à saúde. É rica em fibras, zinco, ferro e quase todo o alfabeto das vitaminas. Antioxidante, reduz o risco de câncer e doenças cardíacas, derrames e problemas oculares. Controla o colesterol e ajuda o sistema imunológico. Mas juro que não foi em nada disso que pensei quando levei o punhado de sementes para casa. Eu me encantei mesmo foi com a foto da embalagem, uma travessa repleta de abóboras listradas e lisas, de cores, texturas e formatos diferentes.
Nasci e me criei na cidade. Mas tenho certa nostalgia do campo, o que me levou a ter uma casinha no interior. É lá que me escondo nos fins de semana, entre meus livros e panelas, duas grandes paixões. Não tenho muita afinidade com a terra, mas mantenho uns vasinhos de ervas. Cultivo manjericão, louro, sálvia, alecrim, orégano, hortelã, pimentas de vários tipos. Com um pouco de dedicação e alguma sorte, eu poderia também colher abóboras.
Naquele sábado, acordei cheia de disposição. Bermuda, camiseta, botas, chapéu, luvas e filtro solar, estava preparada para viver as delícias da vida agrícola. Arremessei a enxada na terra e puxei um torrão. Uma dezena de minhocas saltaram para fora, se contorcendo de raiva (ou de dor?). Que nojo! Cortadas ao meio, algumas continuavam a se mexer. Acho que essa é uma das razões pelas quais meninas não gostam de pescarias. Engoli em seco e pensei que, afinal, minhocas significavam que a terra era boa para o plantio. Mesmo assim, não quis arriscar. Virei o saco de adubo de galinha e misturei, tapando o nariz com a gola da camiseta. Desfiz os grumos com as mãos, rezando pela alma do inventor das luvas de borracha.
O sol estava de rachar. O suor escorria pelas bordas do chapéu. O filtro solar derretido entrava pelos olhos. Os pés cozinhavam dentro da bota plástica. Os cabelos grudavam na cabeça. Arranquei as luvas, joguei longe o chapéu, descalcei as botas. Pisei num formigueiro. Eu tinha sede. Muita sede, mas nenhuma coragem de segurar um copo d´água. Tomei da mangueira mesmo, apesar de morna e ruim. Aproveitei e lavei o rosto. E a cabeça. Finalmente, a terra estava pronta para receber as sementes. Agora era regar e esperar. Lambuzada de creme contra queimaduras de sol, olhos inflamados de alergia ao protetor, pernas coçando pelas picadas de formiga, unhas destruídas, cabelos ressecados e dores nas costas lancinantes, naquela noite sonhei com abóboras.
No fim de semana seguinte, comemorei os primeiros brotinhos. No segundo, os ramos já se espalhavam pelo canteiro. No terceiro, grossos talos se enroscavam na cerca, cheios de botões de flores amarelas e brancas. Eu estava orgulhosa da minha roça.
Passei o mês pesquisando a abóbora. Descobri que não é legume, mas fruta, assim como o tomate, e muito versátil. Vai bem em saladas, pães, tortas, doces, refogados. Selecionei as melhores receitas e fiz a lista de convidados para o banquete que prepararia com o resultado do meu trabalho.
Acompanhei o processo das flores se transformando em frutos. Cresciam, engordavam, amadureciam. A chuva e o sol na medida certa, o amanhecer o e anoitecer de um dia depois do outro pareciam lentos demais para minha ansiedade. No último fim de semana, adiantei a viagem e cheguei na sexta, com a noite já alta. Munida de lanterna, fui verificar a plantação. Lá estavam elas! Umas eram redondas como melões, outras, de gomos grossos e firmes, pareciam mexericas descascadas. A maior parte lembrava uma enorme pera. E a textura das cascas? Lisas, aveludadas, enrugadas, grosseiras ao toque. Amarelo, branco, verde, laranja, as cores formavam desenhos e pintinhas. Como eram lindas as minhas aboborazinhas!
Acordei cedo e chamei o pessoal para a festança. Descrevi o cardápio: salada de abóbora, pão de abóbora, torta de abóbora, escondidinho de carne seca e abóbora. De sobremesa, doce de abóbora!
Com uma tesoura de jardim, fui cortando os frutos. Precisei de ajuda para carregar a colheita. A pia da cozinha se encheu de cores. E de larvas! Bichos gosmentos escapavam por minúsculos orifícios perfurados nas cascas. Brancas, verdes, amarelas, laranjas, as larvas explodiam aos milhares conforme a faca ia cortando a polpa carnuda. Os convidados chegaram a tempo de tirar umas fotos, como a que ilustra essa crônica. Depois, comemos macarrão.
Mais de trinta abóboras foram para o lixo. Apenas doze ficaram ilesas à praga. Descobri que não eram abóboras de verdade, mas cabaças, impróprias para a alimentação. Até as larvas sabem disso. Cabaças são usadas com fins decorativos. Servem para fazer chocalho, peneira, boneca, copo e até escultura.
Meus pés de abóbora morreram. Mas as cabaças continuam proliferando no quintal. Nas próximas semanas, renderão quase uma centena de frutos. É o fim da minha carreira de produtora de alimentos. Em compensação, me inscrevi num curso de artesanato.

Crônica publicada na Coop Revista - Dezembro / 2.009

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Aguenta, coração !



Aguenta, coração!

Lucia Sauerbronn


Vou levar lasanha. A Maura vai preparar a salada. A Marli se incumbiu da torta. A Evelina, da sobremesa, a Leda, dos aperitivos e a Cleni, dos biscoitinhos. Denise oferece a casa e as bebidas. Ainda falta definir o que fica por conta da Vera e da Maria, mas não é nenhum problema: ninguém ainda se manifestou sobre a pipoca e os pãezinhos. A Sueli e a Marly (com y) não sabem se vão aparecer ou juntar-se a outras turmas. Mas dona Isaura é presença obrigatória. Combinamos vestir verde, que é a cor da esperança. Mas quem for de amarelo também será bem recebido. Já a combinação azul e branco, por questões óbvias, foi definitivamente descartada.
Já fizemos também a lista de materiais indispensáveis para os dias de jogo: bandeira do Brasil para pendurar na janela, fitinha verde e amarela para a antena do carro, ioiô, apito e reco-reco. Só não vale papel picado, que faz uma sujeira danada dentro e fora de casa. Proibimos também a vuvuzela, aquela corneta irritante que os sul-africanos inventaram. Mas foi só para poupar nossos próprios ouvidos. É que, como todo bom brasileiro, nenhum fiscal do Psiu vai se importar com poluição sonora em dia de assistir a nossa seleção entrar em campo.
Estamos animados. De quatro em quatro anos repetimos esses encontros. São uma ótima desculpa para nos revermos sem pressa, numa tarde em que todos somos dispensados do trabalho por uma causa justíssima. Para dar conta dos compromissos, vamos ter de correr e terminar as tarefas do dia no curto período da manhã. E depois enfrentar trânsito pesado, ruas apinhadas, ônibus, metrô e táxis lotados para dar tempo de chegar antes do abrem-se as cortinas e comeeeça o espetáculo...
Os maridos vão logo se ajeitar nas cadeiras e sofás improvisados, corações e mentes ligados, olhos grudados na telinha. Só para provocar, prometemos contratar uma stripper para um showzinho especial para a ala masculina, como forma de relaxar a tensão daqueles cruciantes 90 minutos. Mas eles foram claros: juraram colocar para fora até dançarina do ventre que ouse se colocar entre seus olhos e a TV. A única coisa capaz de atrapalhar é a loura gelada acabar, torcida brasileira!
Da cozinha, nós, mulheres, estaremos atentas aos hummm, ohhhs e putz!... Se o locutor anunciar um gol seco, saberemos que é ponto para o adversário. Mas se o grito for de e que gooooooolllllll!!!!!!!, seguido de urros e explosão de fogos, iremos correndo comemorar com eles.
Enquanto os homens acompanham o pimmmmba na gorduchinha, estaremos livres para fofocar à vontade, trocar receitas e confidências, contar piadas e dizer todas as bobagens que quisermos sem juiz nem bandeirinha para dar cartão vermelho.
O teeeempo passa, e alguma de nós poderá lembrar de que é preciso dar um pulo na sala. Com a desculpa de conferir o placar e ver o que anda rolando no carooooço do abacate, talvez ela arrisque pedir emprestado o cartão de crédito do marido enquanto vêem as bandeeeeiras tremulando. O que, secretamente, todas vão querer fazer, depois de ficar sabendo aonde comprar aquele sapato maravilhoso da Marli e o endereço do cabeleireiro fantástico que deu um novo visual à Evelina.
Depois de tanta cerveja, os homens farão fila na porta do banheiro entre o primeiro e o segundo tempo. Vão também conferir os tira-teimas, comentar cada chute, drible, falta, pênalti e todos os lances dramáticos da peleja. E olhar, no álbum de figurinhas, a cara daquele jogador cuja mãe tem passado duvidoso, caso ele faça um golaço em cima do escrrrete canarinho, obrigando nossos pentacampeões a dar ripa na chulipa. Afinal, o que vale é bola na rede! Na rede dos outros.
Quando a gente ouvir fecham-se as cortinas e terrrrmina o espetáculo, vai bater aquela fome. Se o Brasil ganhar, ninguém vai se importar se o prato principal for bife de fígado. Se perder, não haverá bolo de chocolate capaz de tirar o amargo da boca.
É que futebol é uma caixinha de surpresas. Por enquanto, nossa turma programou assistir o Brasil enfrentar os times da Coreia do Norte, da Costa do Marfim e de Portugal. É que, para não atrair azar, ninguém se atreveu a planejar nenhum encontro para a segunda fase. Afinal, nem mesmo quem sonha ser hexacampeão deve contar com os ovos dentro da galinha. Mas, cá entre nós – Deus queira que seja bobagem – não dá lá para confiar muito naquela escalação do Dunga, que resolveu deixar de fora de pato a ganso. E a verdade é que andamos morrendo de medo de acabar comendo peru. Aí, torcida brasileira, não adiaaaaanta chorar...
Essa crônica é uma pequena homenagem a Fiori Gigliotti e Osmar Santos, locutores esportivos que emocionaram os brasileiros e sacudiram os estádios.

Crônica publicada na Coop Revista - Junho / 2.010

terça-feira, 8 de junho de 2010

Anormais são os outros



Anormais são os outros

Lucia Sauerbronn
Doida, doida eu não sou. Mas fico preocupada com essa mania que eu tenho de bater três vezes na madeira cada vez que penso numa coisa ruim. Também não passo debaixo de escada e, quando vejo gato preto, tenho logo de achar um branco. Outro dia, derrubei um pacote de sal. Não deixei ninguém limpar antes de jogar sobre ele um bocado de açúcar. Nunca largo bolsa no chão. Digo que é por higiene. Mentira. Na minha inconsciência, isso faz perder dinheiro. No dia do meu casamento, choveu. Fiquei feliz. Casar em dia de chuva dá sorte. Sei que é tudo bobagem. Mas, se puder evitar, não piso nas linhas da calçada, não deixo sapato virado nem dou lenço de presente. Juro que sou quase normal.
Anormais são os outros. Tenho uma amiga que guarda as roupas separadas por cor e os sapatos ordenados por estação do ano. Com foto na caixa e tudo. Diz que é para ficar mais fácil e não perder tempo. Eu não aguento essa mania que ela tem de manter tudo sempre arrumadinho. Justo ela, que fica maluca porque nunca deixo a louça para lavar no dia seguinte.
Outra chama todo mundo de querida, meu amor, meu bem, amiga, e depois sai por aí falando mal pelas costas. Odeio falsidade. Digo tudo o que penso na frente mesmo.
Não me importo de emprestar as coisas. Desde que não devolvam minha caneta Bic com tampa mordida ou um livro com frases sublinhadas. Por que não fazem como eu, que só rabisco quando estou no telefone? Fico tão entretida que já enfeitei de balõezinhos a borda do documento do carro do meu marido. Mas tenho certeza de que o guarda que pedir para ver vai achar que ficou bonitinho.
É preciso não perder tempo com coisas tão pequenas, quando outras bem mais irritantes acontecem todos os dias. Como o motorista que espera o farol abrir com o pé no acelerador, ou põe o som do carro no último volume como se todos tivessem obrigação de gostar da mesma música. Tem certas manias que mais parecem falta de educação. Ou carência de semancol. Meu vizinho adora cantar no banho. Às 5 da manhã! O pior é que ele reclama só porque gosto do som do meu sapato alto contra o assoalho. Haja paciência.
Impaciente mesmo fico quando uma pessoa começa a contar uma história e emenda em outra, sem dar tempo de contar a minha. Cansa. É muito pior do que eu contando piada, já que sempre esqueço o final. Chato mesmo é aquele amigo que tem mania de grandeza. Acha que tudo o que ele tem é sempre maior, mais bonito e mais gostoso. Não é verdade. O ego dele não pode ser maior que o meu.
Pior é o contrário, o que tem complexo de inferioridade. Gasto um tempão mostrando que, apesar de tudo, ele até que tem coisas positivas. Eu e essa mania de querer ajudar os outros a se sentirem bem...
Não funciona muito com quem tem mania de doença. Quando cruzo com um hipocondríaco não posso fugir alegando dor de barriga. Ele logo vai falar da sua úlcera, indicar o nome dos melhores especialistas, dos remédios de última geração e de uma dieta que, além de resolver o problema, fortalece o sistema imunológico. Entro no dr. Google e pesquiso os sintomas. Pelo sim, pelo não, marco uma consulta e dou um pulo na farmácia.
Estalar os dedos, bater com a caneta na mesa, ficar sentado balançando as pernas são manias nos outros que me incomodam. Também faço coisas que, aos olhos alheios, podem parecer estranhas, mas juro que não têm a menor importância. Que mal há em entrar em casa sempre com o pé direito?
Desde criança tenho algumas manias. Nada sério, mas me esforço em melhorar. Deixei, por exemplo, de comer primeiro toda a casquinha do sonho de valsa e depois mastigar o recheio sozinho. Também já não olho atrás da porta antes de deitar. Ainda não consigo dormir sem meus três travesseiros. Meu marido diz que eles ocupam muito lugar na cama. Ele não pode reclamar: nem durmo mais abraçada com meu ursinho!

Crônica publicada na Coop Revista - Novembro / 2.009

terça-feira, 25 de maio de 2010

O virundum



O virundum
Lucia Sauerbronn
O nome do hino não é o virundum. O herói nunca foi cobrado, nem o bravo tem turbante. Os raios não fugiram. E o Lázaro estalado não tenta ninguém.
Pode parecer piada, mas há quem diga umas barbaridades dessas durante a execução do Hino Nacional. Se até lendo a letra você também não entende bulhufas do que dizem seus versos, não está sozinho. Já vi muita gente importante, com a mão no peito, mexer a boca e fingir cantar, enrolando a letra. Principalmente quando aparecem em close na TV. Imagine as bobagens que sairiam se colocassem um microfone diante deles.
É que, de ouvido, nosso hino parece ter sido escrito em javanês, e muitos apenas repetem os sons que as palavras formam sem ter a menor ideia do que estão cantando. Parece falta de respeito, mas é compreensível. A melodia foi composta pelo maestro Francisco Manoel da Silva há quase dois séculos, em 1822, ano da Independência. Naquela época, começava assim: “Os bronzes da tirania já no Brasil não rouquejam. Os monstros que a escravizam já entre nós não vicejam...”.
Em 1909, os políticos acharam que a letra era difícil e decidiram promover um concurso para escolher versos que representassem melhor o Brasil. O poeta Joaquim Osório Duque Estrada faturou o prêmio.
Ele escreveu um belo poema, que conta direitinho como Dom Pedro I mandou para a corte portuguesa o recado de que os brasileiros já eram donos do próprio nariz. Ainda descreve as belezas naturais da nossa terra e enaltece as características pacíficas, mas não submissas, de seu povo.
Só que agora, cem anos depois, o jeito de o brasileiro se expressar ficou tão mais simples e direto que já chegaram até a pensar em mudar de novo a letra. Não concordo. Mas acho uma pena que nem todos compreendam o sentido dos seus versos.
Por isso, me atrevi a preparar uma livre tradução da letra oficial. O Duque Estrada me perdoe:
Às margens do riacho do Ipiranga, ergue-se a espada e um grito anuncia que, a partir daquele instante, o Brasil deixa de pertencer ao reino de Portugal e torna-se independente. Seu povo não tem medo de lutar pela liberdade e está disposto a morrer por seu país belo, forte e tão grande quanto o futuro que o espera. Cheios de amor e esperança, os brasileiros amam sua pátria generosa.
As estrelas do Cruzeiro do Sul brilham nas noites claras no imenso céu do Brasil, um país grande, que se destaca entre todos os outros da América. Uma terra de muitas praias, solo rico, campos férteis e florestas repletas de plantas e animais de incontáveis espécies. Os que nasceram e vivem no Brasil amam mais e são mais amados. As estrelas da bandeira brasileira simbolizam o amor. Suas cores, o verde e o amarelo, representam um futuro cheio de paz e o passado de glórias. Mas, se for preciso ir à guerra, nenhum brasileiro deixará de lutar, porque quem ama a pátria não tem medo da morte. Entre todos os países, o mais amado é o Brasil. Uma pátria generosa, amada por todos os brasileiros.
Não é o hino mais bonito do mundo? E fica mais belo ainda quando os brasileiros de norte a sul se unem em coro nas vitórias dos atletas canarinho em campeonatos mundiais, seja no futebol, na fórmula 1 ou nas Olimpíadas. Nossa alma brasileira se enche de uma fé inabalável no futuro. É de arrepiar.
Agora, que vamos ter Copa do Mundo, o país inteiro vai cantar, com fé e orgulho, a terra em que nasceu. Procure na internet a versão correta e decore a música direitinho. Se precisar, fique com a letra na mão, para não confundir a primeira parte que diz Brasil, um sonho intenso, um raio vívido com a segunda que começa com Brasil, de amor eterno seja símbolo...
Quando você ouvir os primeiros acordes da música composta por Francisco Manuel da Silva, coloque a mão direita sobre o coração e torça pela sua Pátria amada. Feche os olhos e imagine cada cena que as estrofes exprimem. Pode chorar à vontade. Se a gente prestar atenção no hino, sem falsa modéstia, ele é o retrato do Brasil e dos brasileiros.
Crônica publicada na Coop Revista - Maio / 2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Santa Semana!


Santa semana!

Lucia Sauerbronn
Quando eu era criança, aquela semana me enchia de terror. Os rituais começavam tranquilos no domingo de Ramos, mas a partir da noite de Quinta-Feira Santa eu vivia entre a ansiedade e o medo. Na igreja lotada, escolhia um lugar de onde pudesse identificar, entre os doze apóstolos, Judas Iscariotes, que trairia Cristo por 30 moedas de prata. E tentava compreender como o amigo seria capaz de entregar o Mestre que, numa atitude humilde, lavava os pés dos companheiros e dividia com eles o pão e o vinho. Por causa de Judas, Jesus seria preso, julgado e condenado à cruz. Quando a missa acabava, os altares se cobriam de luto, as toalhas brancas eram trocadas por roxas, não havia mais enfeites dourados, nem flores, nem velas.
O dia seguinte seria de penitência e reflexão. A Sexta-Feira da Paixão era sempre lenta e silenciosa. As pessoas falavam baixinho, rádio e televisão eram desligados. As crianças se alimentavam de peixe e vegetais, os adultos jejuavam. À noite, eu acompanhava minha tia à Procissão do Enterro. Vestidos de preto, os fiéis se arrastavam pelas ruas ao som triste de músicas fúnebres, seguindo o andor com Cristo morto, Nossa Senhora das Dores atrás. No meio da praça, arrepiada de medo, eu me escondia na sombra dos adultos, mas não desgrudava os olhos de Verônica, a mulher que enxugou o suor de Jesus. Enquanto cantava em latim sua melodia chorosa, ela desenrolava o tecido de linho em que o morto deixara estampada a expressão do seu sofrimento.
A procissão seguia em fila até a igreja, para beijar as chagas de Cristo. O que meus olhos viam não era uma imagem de gesso, mas um corpo sem vida, mãos e pés com as marcas profundas dos cravos que o prenderam à cruz. Na cabeça perfurada pela coroa de espinhos, as gotas de sangue me pareciam ainda úmidas. As cenas da Via Sacra, do julgamento à crucificação, invadiam meu sono e se multiplicavam em sonhos sombrios.
No Sábado de Aleluia eu era acordada pelo vozerio das crianças malhando o Judas. Vingar a morte de Jesus era uma diversão inocente e deixava o coração um pouco mais leve. Eu passava o resto do dia entretida com papel crepom e cartolina, preparando o cesto onde o coelhinho colocaria seus ovos.
Na madrugada de Páscoa, todos acompanhavam a procissão do Cristo ressuscitado. Ao som alegre do coro de vozes, as janelas iam se abrindo para a rua iluminada pelas lanternas de vela, protegidas da brisa gelada por cones de papel.
Os anjos, todos os anjos...
Depois da missa, a manhã de outono nascia mansa. Redondo e vermelho, o sol rompia de leve a linha do horizonte. Descíamos a rua de terra em bandos, tomados de uma alegria genuína pela beleza daquele instante. Eu abria o portão e martelava eufórica a campainha, acordando quem ainda dormia para procurar o que o coelhinho tinha deixado em nossos cestos. Eram sempre pequenos ovos de chocolate, algumas balas e confeitos coloridos, que faziam a nossa alegria. Talvez já fôssemos um pouco grandes para acreditar. Mas a festa era tão boa que nem mesmo meu irmão, adulto, fazia questão de ser sabido e estragar tudo contando que coelhos são mamíferos.
Devorávamos os doces durante a manhã, enquanto tios e primos iam chegando para o almoço que minha mãe preparava. A casa se enchia de vozes, as mulheres na cozinha, os homens cuidando das bebidas, os jovens ouvindo os hits da Jovem Guarda, as crianças brincando de bola ou amarelinha.
Tenho saudade desses momentos mágicos, numa época em que os dias eram mais lentos. Não havia tantos recursos nem tanta abundância. Ninguém sentia falta do que não precisava. As pessoas tinham desejos simples, princípios morais firmes e uma fé inabalável que as fazia ir adiante. Perdiam o emprego, tinham problemas financeiros, ficavam doentes. Mas as famílias eram solidárias: jamais abandonariam um dos seus sem apoio e ajuda. Talvez por isso não me lembro de alguém que tivesse depressão ou stress.
Quando meus filhos nasceram, fiz questão de manter a tradição. Traumatizada pelas minhas próprias lembranças, nunca tive coragem de levá-los para assistir aos rituais da Semana Santa. Mas, ano após ano, preparamos nossos cestos e os escondemos no jardim. Numa dessas manhãs, meu filho mais velho, atordoado de felicidade, jurou que tinha visto a pata do coelhinho da Páscoa fugindo de casa. Acho que ele viu mesmo. A imaginação às vezes é mais verdadeira que a realidade.


Crônica publicada na Coop Revista - Abril / 2.010

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O menino da janela



O menino da janela

Lucia Sauerbronn
Abaixo a obsessão por limpeza! Chega de crianças limpinhas, casas super-higienizadas, escovas de dentes desinfetadas! Pesquisadores americanos acabam de descobrir que sujeira faz bem à saúde. Conviver com bactérias ajuda a prevenir inflamações, melhora o sistema imunológico e fortalece o organismo contra alergias.
Nossas mães já sabiam. Minha geração cresceu engatinhando no quintal, comendo tatu bolinha, caçando vagalume, cavocando a terra atrás de minhoca, mastigando bicho de goiaba, chupando manga com casca sem lavar. E lambendo o caldo que escorresse pelo braço encardido. Pisavam em pregos enferrujados, rasgavam sola do pé em caco de vidro, arranhavam braços e pernas em espinho e arame farpado, davam topada em pedra e perdiam a unha do pé, levavam mordida de cachorro, vespa, maribondo, abelha. Ninguém ia à farmácia – e muito menos ao hospital – por causa disso. Para não parar a brincadeira, bastava limpar a ferida com cuspe. Se a coisa fosse feia, merthiolate ardia, mas resolvia. A mãe soprava, dizendo: antes de casar, sara.
Cachorro e gato viviam no quintal. Eram livres para dar suas voltinhas. Traziam da rua bilhões de germes, micróbios e bactérias, mas ninguém se importava. Quando tomavam banho, era uma farra. Ficava quase impossível distinguir criança de animal naquela mistura de alegria molhada a mangueira e sabão em pedra. Às vezes nasciam uns filhotinhos. Cão e gato vira-latas eram gracinhas logo adotadas pela vizinhança.
Portão de casa não tinha tranca. Quando tinha, vivia quebrada, de modo que não havia fronteira entre o quintal e a rua. Depois da escola, ninguém tomava banho. Almoçava e ia brincar. Voltava na hora do jantar, sujo e enfarruscado. Nos dias de calor, as mães mandavam tomar banho no tanque. Nas tardes de tempestade, o chuveiro servia para aquecer o corpo gelado de correr na chuva, chafurdar nas poças d´água e soltar barquinhos de papel.
Em casa, bebia-se água do filtro de barro. Mas a melhor era da bica, onde a água escorria do cano envolto em musgo e bolor. Não menos contaminado do que as xícaras e pratinhos com que as meninas brincavam de comidinha. O bolo era feito de lama. Meninas gostavam de ir colher flores no campo. Apertar sementes de maria-sem-vergonha, fazer buquê de cravo-de-defunto, desfolhar margaridinhas recitando bem-me-quer, mal-me-quer, chupar o suco da flor de maravilha e morder o cabo da azedinha. Meninos também faziam excursões no mato. Iam atrás das mamonas, para guerra de semente. Quando cansavam, cortavam os talos para brincar de bolha de sabão, surrupiando do tanque o pacote de detergente em pó.
Éramos todos sadios, apesar das chupetas de caramelo queimado, quebra-queixo e puxa-puxa vendidos em tabuleiros de madeira encardida. Ainda não existia vigilância sanitária, mas não conheço criança que tenha morrido por chupar as balas de açúcar que vinham soltas nas caixinhas-surpresa misturadas com anéis de arame e
plástico colorido. Às vezes o doce caía no chão. Era só dar uma sopradinha para espantar a poeira e colocar logo na boca, dizendo que o que não mata, engorda.
Vez ou outra alguém tinha diarréia, curada com muita limonada. Se um de nós pegasse catapora, caxumba ou sarampo, os amigos iam fazer uma visitinha. Passavam a tarde jogando dominó, ludo, batalha naval. Voltavam para casa felizes e infectados. As mães incentivavam. Como não havia vacina, era melhor pegar logo o vírus, antes de ficar adulto.
Cuidado e caldo de galinha nunca matou ninguém. Mas até excesso de canja pode causar indigestão.
O menino da casa azul via o mundo através da janela. Era muito asseado. Roupas limpas e bem passadas, meias e sapatos engraxados, uma eterna blusa de lã. Não saía de casa para não apanhar friagem. Não tinha cão nem gato. Era alérgico. Não saía na rua porque era perigoso. As crianças do bairro desistiram de chamar para brincar. A mãe sempre dizia que ele estava doente. Acho que sofria de tristeza e solidão.
Publicado na Coop Revista - Janeiro / 2.010

terça-feira, 13 de abril de 2010

Olha o passarinho!



Olha o passarinho!
Lucia Sauerbronn
A de cabelos cacheados é sua tia Circe, ao lado da irmã, Delta. Os mais velhos são o Henrique
e o Rui. Nessa foto, eu ainda era o caçula dos 11 filhos – depois viriam mais dois. Estou no colo de minha mãe. Atrás dela é seu avô, que morreu quando eu tinha três anos.
Quando chovia muito e era impossível brincar no quintal, eu pedia para ver a velha caixa de fotos. Diante delas, meus pais iam contando histórias de família enquanto matavam a própria saudade. Aqueles homens de ar compenetrado, mulheres e crianças em roupa de domingo revelavam amores, segredos, vitórias, tragédias, sonhos – realizados ou frustrados – de um passado que não vivi, mas era meu.
As mais antigas eram em papel-cartão, cujas bordas se desmanchavam pela ação do tempo. Havia algumas em papel brilhante, tiradas por fotógrafos lambe-lambe na praça. As que eu mais gostava eram de minhas tias em pose de artista de cinema. Por influência de uma Hollywood que apenas começava, as moças costumavam ir ao fotógrafo para registrar o auge de sua juventude e beleza. Guardadas numa capa cinza e protegidas por papel de seda, eram oferecidas como presente aos parentes próximos. Ou ao pretendente, quando o compromisso se tornava sério. Outra foto como aquela só no dia do casamento: o noivo de terno preto e cravo na lapela; a noiva num vestido branco e buquê de flor de laranjeira. Fotografias eram caras, e apenas ocasiões muito especiais mereciam o investimento. Porta-retratos com bebês flagrados em seis poses costumavam enfeitar a parede da sala, ao lado das mesmas crianças no dia da primeira comunhão.
Poucas famílias tinham máquina fotográfica, tipo caixote, para registrar eventos importantes como festas, viagens ou o crescimento dos filhos. O resultado eram instantâneos solenes, guardados como relíquia em álbuns e identificados com nome, local e data numa letra caprichada. Havia também algumas de lembranças da escola, o aluno entre a professora e a bandeira nacional.
Ninguém desperdiçava fotografia: o filme era caro, a revelação, mais ainda. Guardava-se até as que estavam fora de foco, as muito claras ou escuras demais. Podiam não ser perfeitas, mas refletiam momentos que jamais voltariam. Amarelavam, perdiam a cor, as imagens se desfaziam lentamente. Só de olhar esses detalhes, dava para descobrir em que época tinham sido tiradas.
Quando cresci, as câmeras já eram comuns, e passei a fotografar de tudo: colegas de classe, a cidade, casas, família. Fiz questão de guardar nosso passado impresso em papel fotográfico para mais tarde mostrá-lo aos meus filhos. Deu certo. Vivemos momentos bem divertidos relembrando como conheci o pai deles, o dia do casamento, a lua de mel, o nascimento de cada um, os primeiros passos, as festinhas de aniversário. Era engraçado comparar as imagens antigas com as mais recentes. Com o tempo, eles foram fazendo suas próprias fotos. Tantas, que não couberam em caixas. Encomendei um grande armário e enchemos as prateleiras com os álbuns, que precisam ser limpos de tempos em tempos para eliminar as traças e o mofo. Um trabalhão.
Tudo ficou bem mais fácil depois que inventaram as câmeras digitais. Pequenas e práticas, as danadas são inteligentes e fazem tudo sozinhas. Acertam foco, controlam luminosidade. Como dá para deletar as que não ficam boas, ninguém mais aparece piscando nem fazendo careta. Todo mundo sai bonito. E, se não sair, é fácil apagar as ruguinhas e eliminar os quilos extras usando o Photoshop do computador. Fica perfeito. Tão perfeito que nem parece que é a gente de verdade.
Acabou aquela história de gastar com filme e ampliação. Dá para gravar tudo num CD, que não ocupa espaço e mantém as imagens como novas para sempre. Para revê-las, basta colocar o disco no computador e ir apertando a tecla enter, que as imagens aparecem na tela.
Adoro fotografar e agora dou cliques a torto e a direito, mesmo quando estou sem minha máquina fotográfica. Já faz tempo que o celular vem com câmara embutida. É tão fácil que, às vezes, exagero. Não sou a única. Fotografar virou praga mundial. Outro dia, um amigo mandou de presente as que tirou durante viagem ao exterior. Eram 2.800! Tinha até foto de tampa de bueiro!
Contando as que eu mesma tirei e as que os amigos e parentes enviam por e-mail, nos últimos cinco anos juntei umas 20 mil fotos. Pela expectativa de vida da minha geração, calculo ter ainda umas três décadas pela frente. Isso significa que, ao ritmo de 4.000 fotos por ano, serão no mínimo umas 150 mil para me ajudar a relembrar o passado. O que não sei é se, quando eu ficar velhinha, vai existir alguém com paciência para me ouvir contar tanta história...
Crônica publicada na Coop Revista - Fevereiro / 2.010

terça-feira, 23 de março de 2010

Cheirinho de Amor



Cheirinho de amor
Lucia Sauerbronn
Fico na maior saia justa quando digo muito prazer a uma pessoa a quem já fui apresentada. Passo por mal educada. Peço perdão, embora não tenha culpa. É que minha memória visual é péssima. Em compensação, tenho nariz de cão farejador. Sou capaz de lembrar de alguém por um rastro de perfume ou sabonete, se bem que isso não ajude no relacionamento social. Até pensei em trocar o tradicional beijo de cumprimento por uma fungada. Só não sei como as pessoas reagiriam à novidade.
Se os olhos me falham, o nariz é capaz de me transportar às lembranças mais distantes. Sabonete Phebo, creme dental Kolynos e lavanda de alfazema trazem de volta a sensação do beijo de minha mãe, quando me punha para dormir em lençóis de algodão engomados e branqueados de anil. Minhas lembranças de infância são sempre assim, impregnadas de cheiros de Toddy gelado, Grapete, bala de framboesa, drops Dulcora, caderno novo, plástico de encapar, goma arábica, giz de cera, lápis de cor, grafite, borracha, piso de madeira encerado, a mistura mofo e cigarro de velhos cinemas.
Meu nariz deve ter o dobro dos cinco milhões de células receptoras de um nariz normal e parece ser capaz de reconhecer outros tantos milhões de odores diferentes. Para mim, os cheiros guardam sempre outros cheiros. De manhãzinha, o mato tem aroma fresco e suave. Sob o sol forte, se torna doce e intenso. Mas muda totalmente na garoa do inverno, e é diferente sob a chuva de verão.
Antigamente, eu gostava de caminhar na cidade de olhos fechados. Brincava de identificar, pelo cheiro, onde ficavam dentista, açougue, loja de tecidos, hospital, jornaleiro. Casas e terrenos baldios exalavam perfume de rosas, café, mamona, estrume, terra molhada, feijão temperado, horta, cigarro. Hoje, meu olfato embotou. Nas ruas, tudo o que sinto é o ar sufocante e impregnado de dióxido de carbono. Ao invés do nariz, tenho que apelar para o GPS.
Dá para viver sem enxergar ou ouvir. A vida pode ficar sem graça, mas ninguém morre se não tiver tato ou paladar. Posso estar exagerando, mas aposto que o nariz é o grande responsável pela preservação do reino animal no planeta. Não digo isso por sua função mais óbvia, que é respirar. Sem olfato, não seria possível, por exemplo, saber se um alimento está bom ou estragado sem precisar experimentar. E só de experimentar, comida estragada é capaz de matar. O ser humano parece ter esquecido disso, mas o cheiro tem outra função importante.
Segundo os cientistas, o amor não começa quando os olhares se encontram, mas quando um aspira os odores do outro, que emanam feromônios, os hormônios do corpo. Misturados a outros próprios, como suor e hálito, eles desencadeiam a atração e o desejo sexual. Quando as pessoas se beijam, aproximam os narizes e aspiram a química do outro. É assim que escolhem com quem querem conviver. E assim descobrem se o que vai rolar é namoro ou amizade.
Fiquei preocupada. Eu mesma abuso de perfumes, cremes, desodorantes, xampus, pasta de dentes, resultando numa mistura de baunilha, chocolate, limão, maçã e hortelã. Se não tomar cuidado, meu marido pode me confundir com um prato de sobremesa.
Se os cientistas estiverem certos, vai ser cada vez mais difícil encontrar sua alma gêmea. Bem fazem os cães, que confiam mais no focinho do que na aparência. Quando se encontram, vão logo se cheirando para ver se o caso é de mostrar os dentes ou abanar o rabo. Sábios animais, que se reconhecem e se atraem sexualmente pelo cheiro que exalam.
Só que, agora, nem os cães estão livres da praga do cheiro que não é seu. Eles vão ao pet shop, usam xampus, condicionadores, perfumes. Daqui a pouco nem eles serão mais capazes de distinguir macho de cadela. Desse jeito, para ter filhos ou filhotes, vamos todos ter de fazer inseminação artificial...
Crônica publicada na Coop Revista - Março / 2.010