quarta-feira, 24 de junho de 2009

Memória virtual




Memória virtual
Lucia Sauerbronn
Reviro a bolsa procurando os óculos que estão pendurados no pescoço. Esqueço as chaves no escritório e não consigo entrar em casa. Guarda-chuva nem uso mais. Deixo recados para mim mesma e não lembro de ler.
Conversar virou pesadelo. Fico escaneando a memória atrás de uma palavra qualquer, mas ela se esconde na confusão dos meus neurônios. Embatuco no meio da frase e aí acontece o pior: não sei mais o que ia dizer. Gosto de comer gergelim. Para lembrar o nome do cereal, preciso cantar a música do biguimec até o fim.
A falta de memória me faz passar por situações delicadas. Cansei de ir em festa no dia errado, confundir filha com mãe, chamar a atual pelo nome da ex-mulher, perguntar pela saúde de quem acompanhei o enterro, dizer muito prazer a quem já fui apresentada.
Vivo no mundo da lua e cometo várias atrocidades. Umas difíceis de explicar, outras que dão vergonha confessar. Chego a trombar com um grande conhecido e não dizer nem olá. Pode ser que, em outra oportunidade, faça a maior festa quando encontrar.
Muita gente deve me achar esquisita. Vivo angustiada. Para não ser acusada de louca ou mal-educada, espalho por aí que sofro de miopia. Só não explico que é miopia mental. Minha cabeça nunca está no foco certo.
Aprendi a driblar situações saia-justa com frases genéricas. Chamo a pessoa de querida. Pergunto se está tudo em bem casa. Para estender a conversa ainda arrisco:
E lá (no trabalho? na escola?) alguma novidade?
Assim vou captando pistas para descobrir com quem estou falando. Nem sempre dá resultado.
Essa espécie de amnésia me perseguiu por toda a vida adulta. Em compensação, tenho memória de elefante para coisas sem a menor utilidade prática. Sei de cor as letras inteiras dos anúncios da Varig nos anos 60 e posso dizer de cabeça o número do telefone das minhas amigas de escola. Da época em que estava na escola. Basta ouvir uma melodia ou reconhecer a estampa de um vestido que cenas inteiras me voltam à memória como se estivessem acontecendo naquele instante.
Recito de cor poesias que aprendi na infância porque achei bonitas. Não é de se estranhar. A expressão saber de cor vem do latim cuore, que quer dizer coração. E o que passa pelo coração a gente nunca esquece. Como as músicas que a Elis cantava.
Antes que alguém insinue que estou ficando velha, acho bom deixar o preconceito de lado. A memória dos jovens não é melhor, apenas tem mais espaço livre. Eu, por exemplo, desperdicei a minha com bobagens que nunca mais vou usar. Para que é que vou morrer sabendo os afluentes do rio Amazonas?
Ando mais esperta. Recebo tanta informação, que procuro selecionar o que importa e deletar o que não interessa. Só que saber onde deixei as chaves de casa continua a ser de fundamental importância.
Para dizer a verdade, a situação está ficando difícil. O médico receitou umas pílulas para ativar a memória. Acho que fariam bem, se lembrasse de tomá-las. Recorri a alguns truques para treinar minha capacidade de reter fatos recentes. Comprei uns livretos de palavras cruzadas. Sei que 15 quilos correspondem a uma arroba. O primeiro nome de Einstein é Albert. Já a atriz do filme Proposta Indecente é aquela morena bonita, que foi casada com o ator que tem um sorrisinho maroto... Ela fez outro filme legal: o marido morre assassinado e volta do além para salvá-la, tinha uma música bacana... O sobrenome dela é o mesmo do cigarro que aquele careca, que fazia um seriado policial nos anos 70, fumava... Desisto.
Depois de anos de uso, meu fiel computador andava meio lerdo. Chamei o técnico. Ele fez uma faxina no hard disk e eliminou os arquivos inúteis. Deu um up grade na memória e instalou um sistema de busca. Está funcionando que é uma beleza. Para testar, abro o site e escrevo “nome da atriz do filme Proposta Indecente”. O resultado aparece em menos de um segundo: Demi Moore. É claro que eu sabia! A informação só estava perdida no buraco negro da minha mente.
Fiquei animada. Do jeito que a medicina anda avançando, quem sabe os médicos consigam fazer o mesmo com o meu cérebro...
Crônica publicada na Coop Revista - Fevereiro / 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário