quinta-feira, 25 de junho de 2009

A cadela e o papagaio



A CADELA E O PAPAGAIO
Lucia Sauerbronn
Quando as crianças eram pequenas, aos sábados dormiam na casa dos avós. As manhãs de domingo eram nosso momento de paz. Sem relógio e sem filhos, a gente não saía da cama, com direito a namorar, vagabundear e dizer as bobagens que os casais apaixonados costumam dizer. O silêncio daquelas manhãs mágicas só era quebrado pela conversa entre nossa cadela e o papagaio do vizinho.
Vocês podem não acreditar, mas naquela época bichos de estimação eram tratados como animais. Não dormiam aos pés da cama, não comiam ração vitaminada nem iam ao pet shop. Vida de gato, por exemplo, era fácil. Bastava ser gato. Já o cachorro tinha obrigação de cuidar da segurança da casa.
Não era o caso da Chaira, uma linda boxer de pelo marrom e focinho branco. Nós a compramos para fazer companhia aos meninos. Quando chegou, era pequena e engraçadinha. Por algum tempo, os três viveram felizes, jogando bola e rolando pelo tapete da sala. Diferente dos cães do bairro, ela dormia numa almofada no quarto e de manhã acordava as crianças com beijinhos lambidos.
Ela cresceu bem mais depressa que os meninos. Logo eles passaram a fugir dos seus carinhos estabanados, que já então machucavam. O jeito foi construir uma casinha para ela no fundo do quintal. Por algum tempo, fomos para a cama cheios de remorso, ouvindo seus gemidos na solidão da noite.
Sair no quintal virou uma tortura. Ela babava e urinava de gratidão por qualquer cosquinha na cabeça. Inconformada em ficar sozinha, prendia nossas pernas com as patas. O jeito era arrastá-la até a cozinha e chacoalhar os pés com energia, batendo depressa a porta sem dar tempo para ela entrar.
Matriculamos nosso bebezão de quatro patas numa escola de cães. Quem sabe, adquirisse bons modos. Na terceira aula, o treinador desistiu. Ela brincava, não obedecia e atrapalhava os outros alunos. Passear com a coleira era um verdadeiro suplício. Ela é que nos guiava. Às vezes nossos filhos se divertiam com outros cãezinhos. Não podíamos acusá-los de traição. Nós mesmos evitávamos nossa cadela, vítima de uma carência afetiva de causar pena.
Certa vez fugiu de casa. Acho que para chamar atenção. Percorremos as ruas do bairro em pânico. O medo era de que, numa atitude desesperada, ela se atirasse sob as rodas de um carro. Duas horas depois, a encontramos brincando tranquila com algumas crianças. Correu para nós abanando o rabo, como se fugir de casa fosse coisa normal. Diante de manifestações de fragilidade emocional, chegamos a procurar um veterinário homeopata, que receitou uns florais. Mas ela mastigou o frasco.
Já o papagaio do vizinho nunca foi dado a demonstrações de afeto. Com ele, crianças não tinham vez. A resposta para “dá o pé loro” era umas boas bicadas. Passava seus dias quieto, mastigando sementes de girassol e nacos de banana. Se estivesse de bom humor, podia até fazer uma gracinha. No geral era um papagaio educado, que sabia seu lugar. Não dizia palavrão, não fazia sujeira.
O pessoal da casa respeitava a personalidade circunspecta como a de um velho ranzinza que atura seres humanos por falta de opção. Nos dias de chuva ficava amuado. Quando tinha visita, permanecia calado. A família só se deu conta da falta que fazia quando sumiu e reapareceu dias depois, sem qualquer explicação.
Nossa cadela e o papagaio do vizinho eram de personalidades bem diferentes. Mas tinham o mesmo inimigo: a solidão. Durante a semana, se distraíam com o barulho da rua, o movimento das pessoas. Mas não suportavam a dureza das manhãs de domingo.
Do lado de lá do muro, ele chamava seu nome. Do lado de cá, ela soltava um latido longo e ressentido. A conversa, monótona, podia durar horas. De vez em quando ele se animava a cantar. Em resposta, ela dava vários latidos, como se aplaudisse a ousadia.
A Chaira morreu aos 13 anos. O papagaio, pouco tempo depois. Nunca se viram, mas sempre se amaram. Hoje me pergunto porque nunca me ocorreu de formalizar as apresentações. O papagaio talvez não suportasse a dura realidade: Chaira não passava de uma cadela. Já ela não tinha idéia de que se tratava um papagaio. Imagine sua decepção diante daquele ser manco, de penas verdes e bico em forma de gancho, caso um dia ele tivesse a coragem de se libertar da corrente para visitá-la.
Seria o fim trágico de uma linda história de amor. Os dois viveram separados pelo muro, respeitando uma distância que só fez fortalecer seus laços de afeto. Afinal, como todo mundo sabe, dividir o mesmo espaço acaba até com a mais louca paixão.
Crônica publicada na Coop Revista - Março / 2008

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