terça-feira, 23 de junho de 2009

E o dia amanheceu em paz



E o dia amanheceu em paz
Lucia Sauerbronn
Eu já estava achando que o ano deveria acabar em novembro, sem fogos de artifício nem sete pulinhos no mar. Saltava dezembro e amanheceria dois de janeiro. Às favas com o espírito natalino. Festas de fim de ano deveriam ser uma época de confraternização, demonstrações de amor ao próximo, troca de presentes, alegria, reencontros, mas às vezes o espírito de Natal parece mais espírito de porco.
Ou porca, se levar em conta os quilos que ganhei nos encontros e despedidas de fim de ano. Entre uma comemoração e outra, eu me perguntava do que, afinal, as pessoas se despediam: provavelmente, todos passaríamos o ano seguinte nos encontrando tantas vezes quanto no ano que acabava.
Correndo de festa em festa, quase passo as Festas com as unhas roídas, os pés encardidos, cabelo de maria louca e pernas de mulher macaco, se a alma caridosa do cabeleireiro não me atendesse de madrugada. Parece que todas as mulheres decidiram dar um trato no visual como se o mundo fosse acabar na noite de Natal e elas temessem ser barradas por São Pedro na entrada do Paraíso.
Passei a véspera dividida entre preparar a ceia e comprar os últimos presentes. Enfrentei o trânsito infernal, falta de vaga nos estacionamentos, lojas abarrotadas, vendedores confusos e consumidores irritados. Às oito da noite, depois de agarrar a última boneca da prateleira, com o corpo na fila do caixa e a cabeça no assado que queimava no forno, lembrei que ainda precisava preparar minha sobremesa especial de Natal.
Cheguei em casa junto com os primeiros convidados. Tirei um bolo do freezer, tomei uma ducha, coloquei o vestido, passei batom e, com os pés em chamas, desprezei o sapato de salto em favor de um chinelinho confortável. Se alguém notou o deslize, fingi não perceber.
Quando o relógio deu 12 badaladas, foi aquela festa. As pessoas se abraçaram, trocaram presentes (que depois seriam trocados na loja porque não serviram) e correram devorar a ceia. Uma hora depois, lá estava eu solitária na cozinha, atravancando a geladeira com sobras de peru, maionese, farofa e sobremesa. Passei o dia seguinte limpando a bagunça, agradecida por não ter de passar o revéillon em casa. Mas esse é outro capítulo.
Entre Natal e Ano Novo, quando quase tudo está fechado, há uma série de providências a serem tomadas: adiantar o trabalho para não começar ano novo com obrigação velha, pagar as contas – porque conta não leva em conta feriados prolongados – encontrar alguém disposto a cuidar do cachorro e ainda arrumar a mala, sem esquecer de levar maiô, chinelo e filtro solar.
Já era noite quando partimos em direção à praia para brindar o ano novo com champagne e jogar flores no mar. No caminho, lembrei de comprar um vestido branco (que jamais usarei de novo) e uma camiseta com a inscrição 2009 para meu marido (que terá o mesmo destino). E também roupa de baixo novinha para dar sorte. Amarelo atrai dinheiro; rosa, beleza; vermelho, paixão; branco, paz. Mas, àquela altura, qualquer cor serviria, se a loja ainda tivesse lingerie menor que número 52.
Quando finalmente pegamos a estrada, travamos no congestionamento antes do pedágio. Em meio ao mar de automóveis, tentei ignorar o olhar fulminante do meu marido e à meia-noite fiz um brinde com champagne quente. Duas horas depois, quando atingimos a primeira curva da serra, o policial nos parou para o teste do bafômetro. Multados e guinchados, voltamos para casa quando o dia amanhecia.
Abri as cortinas para a primeira manhã de 2009. Chamei meu marido para olhar. Lentamente, o horizonte se tornou vermelho e, de mansinho, o sol rasgou a escuridão. Os raios dourados que então invadiram a sala nos encontraram abraçados e silenciosos. Lembrei da loucura toda das últimas semanas. Pensei nos amigos, nos companheiros de trabalho, nos meus irmãos, nos meus filhos, nos que já se foram, deixando suas marcas em nós. E sorri diante da inutilidade de todos os gestos que pretendiam mostrar meu carinho e afeto por eles.
Podem me chamar de mau-humorada.
Crônica publicada na Coop Revista - Janeiro / 2.009

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