quinta-feira, 25 de junho de 2009

O vendedor de biju



O vendedor de biju
Lucia Sauerbronn
A fila da balsa era grande. A paciência, pequena. O calor, exagerado. Eu tinha sede. Muita sede. Ambulantes vendiam cocada, bananada, paçoca, amendoim. Água que é bom, nada. Tinha acabado. Até o estoque dos bares. Foram buscar noutra cidade. Vinte minutos de ida, vinte de volta. E eu não era camelo. Sabe como é, eles explicavam. Fim-de-semana esticado, sem previsão de trovoada nem chuvisco...
O que é que eu tinha de inventar de ir à praia? Porque o mundo inteiro tinha resolvido ir à praia?
O vendedor chegou de mansinho. Assustei. Ele pediu desculpas. Eu, água. Não tinha. Tinha biju.
Naquele calor de cão, a última coisa que eu precisava era biju enxugando as últimas gotículas de saliva da garganta ressecada. Não, obrigada.
Ele compreendia. Num calor daqueles, casquinha de biju não gruda só na garganta. Se cai na pele suada dá uma coceira danada. Por isso ele gostava de ensinar como comer biju sem deixar cair as migalhas.
A senhora rasga o saquinho fazendo com corte reto na parte de cima. Assim. Depois sopra dentro como se fosse um balão. Aí coloca debaixo do queixo. Pronto! Todas as migalhas caem dentro do saquinho.
Fiquei tão atenta em acompanhar a explicação da bandeja improvisada que, quando dei por mim, tinha comido um biju inteirinho.
O gosto do biju me trouxe boas lembranças. Quando criança, o clec-clec da matraca do bijuzeiro era o sinal para eu chacoalhar meu cofrinho em forma de porco. Tirar umas moedas a tempo de alcançar o vendedor. Quase pude ouvir minha mãe gritando da porta para eu ir devagar. E não atravessar a rua. Distraída, aceitei o segundo biju. Estava delicioso.
Enquanto mastigava o terceiro, ele explicou que aquele não era um biju qualquer. Tinha sabor especial. Além de ingredientes selecionados e muita higiene, era feito com amor. Ele mesmo preparava, seguindo a receita que aprendeu com a avó. Uma massa à base de açúcar, farinha e água, assada como panqueca bem fina, depois enrolada. E me ofereceu mais um. Estava crocante.
Asso de madrugada e espero esfriar bem antes de pôr no saquinho. Se abafar, fica chocho. Pior que biju abafado só biju passado. O meu é sempre fresquinho. Direto do produtor para o consumidor.
Gostoso mesmo, concordei. E aceitei o quinto.
É tão bom que vendo tudo no mesmo dia.
Olhei para o saquinho de migalhas. Segundo ele, do biju nada se perde. As migalhas que viram paçoca. Em pedaços, é bom de mergulhar no leite adoçado. Amassadinho como farofa, torna o sorvete e a salada de frutas mais gostosos.
Tenho três mil clientes, turistas, gente com casa na ilha. Eles não passam por aqui sem levar pelo menos um pacote. O que comprova a qualidade do meu produto.
Alguém chegou com a água. Quase de um único gole, tomei toda a garrafa, que ele mesmo abriu:
Cortesia da casa, para virar freguesa. A senhora é minha cliente 3001!
Olhei para ele. Fora a roupa branquinha, seu aspecto era o mesmo de todos os ambulantes e pedintes, que exageravam a cara de coitados. Compra para ajudar minha família (eu nem conheço!). Compra porque eu estou desempregado (e se eu estiver também?). Pelo menos estou vendendo, não roubando (mas a esse preço?). Argumentos que exploram nossa compaixão e levam a comprar por puro sentimento de culpa.
Ele, não. Era um estrategista. Um homem de marketing.
Não pude deixar de pensar. Se aquele rapaz tivesse recebido o que toda criança merece – alimento, saúde, casa, escola, família estruturada –, dentro de poucos anos seria um dos mais festejados publicitários do país. Lamentei a quantidade de talentos que o Brasil perde. Crianças esquecidas em bairros miseráveis como aquele, sem chance de futuro.
A balsa chegou. Antes de embarcar, fiz as contas. Seriam seis pessoas em casa. Um pacote para cada um, mais o que comi, sete.
Não, a senhora só paga seis. O primeiro foi demonstração.
Paguei. Agradeci. Sorri. E ele nem cobrou pela aula de marketing.
Crônica publicada na Coop Revista - Julho / 2007

Um comentário:

  1. Lucia, estou neste instante escrevendo a minha versão sobre o biju e o cle-clec de nossa infancia. Talvez tenhamos a mesma idade.. pois depois de mim, criança alguma conhece esta matraca, bem como o recipiente onde a tampa era uma roleta da sorte: caisse no 5 levava 5 bijus..lembra disto? E eu também abria o porco para compra-los! Enfim, procurando uma imagem desta matraca pela net, te encontrei. Gostei da crônica! Abraço.

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