quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Amor de quatro patas




Foi difícil convencer o pessoal lá de casa, mas bati pé. Eu queria um cachorro. Já tinha até escolhido o nome: Milou. Como o do Tim Tim, jornalista aventureiro das histórias em quadrinhos. Alguém lembrou que o companheiro do meu herói era macho, mas não liguei. Quando cheguei ao canil e falei o nome diante da ninhada, ela correu lamber minha mão e me adotou imediatamente. Aquela era uma autêntica Milou.
Esperei desmamar. Fui buscar um mês depois e levei um susto. Estava magra e pelada, por causa de uma alergia. Não a reconheci, mas ela, sim. Pulou no meu colo e me encheu de beijinhos. Algumas semanas, muitas loções e vitaminas depois, amarrei nos fiapos do topete o primeiro lacinho que seria sua marca registrada.
Desde cedo, a danada mostrou que tinha personalidade. Dava sempre um jeito de conseguir o que queria. Meu marido tinha sido claro: eu poderia manter a cadelinha no apartamento, desde que ficasse dentro dos limites da área de serviço.
Ajeitei seu cestinho ao lado da máquina de lavar. No dia seguinte, passou a ocupar o tapete da cozinha. Uma semana depois, já se refestelava no sofá da sala. Numa noite fria, acordamos com aquela bolinha de pelos aninhada aos nossos pés. Meu marido deu uma bronca. Ela não se abalou: passou a esperar ele dormir para se ajeitar entre os lençóis. Pulava da cama ao primeiro sinal do despertador. Quando ferrava no sono e perdia a hora, era sempre o mesmo teatro. Ele fingia ficar bravo, ela fingia estar arrependida. Apoiava a cabeça nas patinhas cruzadas e olhava de lado, como criança pequena quando faz arte.
Era uma lady. Tomava banho uma vez por semana, sentava na poltrona para assistir TV, engolia remédio e aguentava injeção sem reclamar. Recebia as visitas na porta, passeava sem coleira, ficava sozinha na entrada da padaria enquanto fazíamos compras. Se íamos ao teatro ou ao restaurante, esperava no carro, sem latir nem fazer bagunça. Acho que ela nunca desconfiou que não era gente. Na feira, nas ruas do bairro, entre os conhecidos, fazia o maior sucesso. Todos queriam um filhote seu. Dos sete que teve, seis estão com amigos. Se contarmos os descendentes, deve haver uma centena de Milouzinhas espalhadas por aí. Até meu pai, que nunca gostou de cachorro, se derretia por ela e lhe preparava bifinhos fritos com cebola. Quando nós viajávamos, eram companheiros de solidão. Quem tem um cão por perto nunca se sente sozinho.
Milou veio para ocupar o enorme vazio que os filhos deixaram quando foram cuidar da própria vida. Foi uma época em que meu marido e eu brigamos muito. Quando percebia um de nós triste, ela encostava a cabeça no colo e suspirava, como quem dá o ombro para consolar. Pensamos em nos separar. Meu marido abriria mão de tudo, desde que levasse a cachorra. Alegava que era a única que ficava feliz quando ele voltava para casa.
Conforme a idade vai chegando, a gente pensa mais na vida, fica com o coração mole, acha que não vale a pena se chatear por pequenas coisas, discutir por bobagem. Reconciliamos. Passamos a nos perdoar mais. Entre algumas brigas, chantagens emocionais e muitos xixis no tapete, vivemos os três felizes. Achamos que seria para sempre.
Cães não duram tanto. Ficou velhinha, doente. Apesar das muitas cirurgias, o mal continuava a crescer dentro dela. Ainda fazia festa e corria a buscar a bola quando chegávamos. Mas logo perdia o fôlego e ia deitar no seu cantinho. A Conceição, que trabalha conosco e de quem ficou grande amiga, se desdobrava para fazer seus pratos prediletos. Ela rejeitava. Já não queria se alimentar.
Alguém sugeriu sacrificá-la. Fui covarde. Deixei que seus últimos momentos fossem sofridos, os remédios não faziam mais efeito. Ela já quase não reagia. Apesar da respiração ofegante e do coração fraquinho, ronronou de prazer como um gato enquanto acariciava sua orelha na última noite em que a velei. Esperou eu adormecer para partir.
Ajeitamos seu corpo, vazio de lambidas e carinhos, numa caixa branca, junto com a almofada e os brinquedos prediletos. Enterramos ao pé do salgueiro-chorão, que plantei num gramado em homenagem à lembrança do meu pai.
A casa está escura e silenciosa. Sei que há muitas histórias tristes nesse mundo. Guerras, doenças, humilhações, crianças sem teto, comida e afeto. Parece até ridículo sentirmos tanto a sua ausência.
Mas a relação com um cão é bem menos complicada do que entre seres humanos. Mesmo com nossos filhos e melhores amigos, é preciso ter cuidado com as palavras, passar por cima de inquietudes como inveja, ciúme e ingratidão. Temos de suportar injustiças para não nos sentir mais sós do que de fato estamos. Entre humanos, é difícil não magoar nem ser magoado.
Já um cão não guarda rancores nem ressentimentos. Perdoa nossas piores falhas, até mesmo as de caráter, porque não faz julgamentos. O cão é fiel a quem ama. E esse é o único amor incondicional.