quarta-feira, 24 de junho de 2009

Os meninos crescem



Os meninos crescem*
Nem sei como tive coragem de levar para casa aquele embrulhinho de dois quilos, pele muito branca e a cabeça coberta por uma penugem ruiva. Na mesma noite, assustei com seu choro e tropecei no cestinho que estava no chão, ao lado da cama. Ele rolou e ganhou uma marquinha roxa na bochecha. Ansiosa, não consegui amamentá-lo: na primeira semana, comprei uma mamadeira. Quando teve dor de ouvido, queimei sua orelha com óleo quente. Estabanada, deixei ele cair do carrinho algumas vezes. Como mãe, eu tinha tudo para dar errado. Apesar de mim, ele sobreviveu.
Foi um menino danado. Mas, fora o anjo da guarda, não deu trabalho para quase ninguém. Exceto os bombeiros, chamados às pressas quando ele e o irmão puseram fogo na casa.
Com o irmão, por sinal, fez uma parceria engraçada. Os dois, tão diferentes em personalidade e interesses, cresceram brigando, reclamando um do outro e se protegendo, como amigos de verdade. Moravam no sótão entre gibis, brinquedos e muita coisa espalhada pelo chão, território em que adulto só pisava como visita.
Determinado, quando entrava num jogo era para ganhar. O que nem sempre acontecia, como aquela vez em que apanhou no judô de uma menina maior do que ele. Aos oito anos resolveu ser independente. Fabricou bijuterias e armou uma barraquinha em frente de casa, no dia da feira. A avó acabou comprando tudo, e ele guardou o dinheiro no cofrinho. Montou uma bicicleta peça por peça. Fez seu próprio skate com a ajuda do avô. Sem pedir nada em troca, em dia de eleição escolhia um candidato e saía distribuindo santinho. Depois acompanhava a apuração, para conferir o resultado.
Tinha medo do escuro, e às vezes acordava de um pesadelo banhado de suor. Apesar disso, aos 17 anos enfrentou um ano inteiro de intercâmbio, morando com famílias desconhecidas fora do país. Mais tarde, foi estudar inglês por conta própria. Arrumou emprego de garçom num hotel em que a chefia americana não se dava com os funcionários mexicanos. Falando as duas línguas, construiu uma ponte entre eles. Ganhou prêmio como empregado do ano, mas chegou a morar no bairro barra pesada do Bronx, até que as torres gêmeas caíram. Tive de apelar à velha chantagem emocional de mãe para obrigá-lo a voltar para casa.
Chegou ao Brasil em meio à crise de 11 de setembro e não conseguia emprego. Publicitário, encontrou um jeito criativo de fazer propaganda de si mesmo: mandou imprimir um currículo do seu tamanho e, vestido de homem-currículo, circulou pela avenida Paulista. Veio até televisão.
Mas nem tudo foram flores. Não foi aluno dos mais brilhantes; acordava de mau humor para ir para a escola e passava de ano raspando. Nervosinho, um dia saiu de casa depois de brigarmos feio. Enquanto eu passava a noite falando com a polícia, ele dormia sossegado na casa da avó, proibida de me avisar... Com o pai também batia de frente, testando forças para se impor como adulto. Mas a cara feia durava pouco. Logo estavam torcendo juntos no futebol ou na fórmula 1.
O sem-vergonha aprontou das suas. Bateu carro, tomou porre, foi baladeiro, namorador. Até o dia em que reencontrou a velha paixão da escola e pediu a moça em casamento, com direito a igreja, padre, vestido de noiva.
Passei semanas escolhendo belas músicas clássicas para cada momento da cerimônia. Para minha surpresa, entrei na igreja de braço dado com meu filho ao som de Missão Impossível. Assim como os convidados, não pude segurar o riso. Apesar da pose e da seriedade do momento, aquele homem de terno escuro continuaria a ser eternamente meu menino arteiro e criativo. Recebeu a noiva no altar, trocaram alianças, juraram amor eterno, prometeram fidelidade. Estavam felizes.
Quando o vi deixar a igreja levando pela mão a mulher que escolheu para dividir o futuro, fiquei orgulhosa, mas preocupada: se fui uma mãe atrapalhada, como é que iria me comportar como sogra?
Minha nora é esquecida, agitada, avoada, desastrada e faz dez coisas ao mesmo tempo. Dizem que os homens procuram uma esposa parecida com a mãe. Sosseguei: acho que vamos nos dar bem.
* Os meninos crescem, título emprestado do livro do escritor Domingos Pellegrini.
Crônica publicada na Coop Revista - Outubro / 2.008

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