quinta-feira, 25 de junho de 2009

Meu velhinho



Meu velhinho
Lucia Sauerbronn
Sinto uma vontade enorme de abraçar meu pai. Não um daqueles abraços banais, que a gente troca quando se encontra. Mas um abraço de verdade, como se eu ainda tivesse dez anos, para mostrar o quanto gosto dele. Tenho medo. Que um abraço vindo do coração pareça despedida.
Ele vai fazer 85 anos. É ágil, lúcido e danado; se comporta como se tivesse 25. Fica todo orgulhoso ao ver que causa espanto quando confessa a idade. Só nessas horas fica vaidoso. Não usa roupas de moda, não se preocupa em disfarçar as rugas e os cabelos brancos. É apenas um velhinho alegre e simpático.
Sua saúde, garante, é resultado de uma dose de vitamina E diária e uma sessão matutina de exercícios para braços e pernas: mais de trezentas flexões cada. Além de um copo de vinho tinto – desses de garrafão mesmo – no almoço, outro no jantar. Fora isso, mantém o coração azeitado: vive apaixonado e nunca esquece de mandar flores e chocolates para a namorada da vez. Esse velhinho independente, que vai sozinho ao médico quando precisa, para não dar trabalho a ninguém, parece que vai durar cem anos.
Falamos toda manhã por telefone, mas quase não vou à sua casa. Eu me acomodo porque ele faz questão de me visitar no trabalho com regularidade. Conversamos por meia hora, não mais: não quer atrapalhar. Diz que compreende que os filhos e netos andem ocupados cuidando da vida. Deve sentir falta, mas não cobra mais atenção de nenhum de nós.
Pelo contrário, é ele quem dá atenção às pessoas que vêm contar seus problemas. No mercado, na feira, na farmácia. Ele ouve, dá conselhos. Tem uma porção de netos emprestados que o chamam de vovô. Vive comprando doces e presentinhos em troca de um sorriso e um abraço.
Para ocupar o tempo, está sempre inventando coisas para fazer, seja reformar o jardim ou trocar o encanamento do banheiro da casa em que crescemos e que dividiu com minha mãe até ficar viúvo. Uma casa cheia de lembranças, onde o mesmo carrilhão marca a passagem do tempo, soando a cada quinze minutos.
Outro dia, descobriu que as portas estavam infestadas de cupim. Decidiu contratar um
profissional para pintar a casa. O homem andava ocupado com outro serviço. Enquanto esperava a vez, pintou dois cômodos.
Pouco a pouco, vai se desfazendo de documentos e objetos guardados nas últimas décadas. Para ele, são coisas inúteis. Como sabe que eu gosto, e porque me causam boas lembranças, traz de presente balões de vidro, balanças e aparelhos antigos, como o microscópio que o vi usar em seu laboratório de análises, de onde tirou o sustento e a educação da família.
Ele me ensinou a andar de bicicleta. A empinar papagaios. A não ter medo de nada nem de ninguém. A respeitar as pessoas. A ter respeito por mim. A sentir alegria de viver, acima de qualquer coisa. Porque, assim como os momentos bons, os ruins também passam.
Ficou sem pai aos três anos. Lutou pela vida. Algumas vezes ganhou. Outras, perdeu. Enterrou uma filha. E minha mãe, depois de uma longa doença, poucos meses antes de comemorar bodas de ouro. Ficou perdido. Levou dois anos para se despedir. Distribuiu suas roupas e objetos pessoais, mandou ampliar fotos das várias fases da vida da moça que conheceu aos 18 anos. Quando acabou, reproduziu as mesmas imagens em tela, que passou a pintar compulsivamente até preencher todas as paredes da sala. Só então deu por completa a cerimônia do adeus. E acordou de novo para a vida. Sem lamentos.
Cuida do pé de pitanga, distribui mudas de orquídeas, poda as roseiras do jardim que eles plantaram juntos e que florescem todos os anos.
O mundo seria bem outro se todos tivessem a sorte de ter – ou ser – um pai assim.
Crônica publicada na Coop Revista - Setembro / 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário