segunda-feira, 10 de maio de 2010

Santa Semana!


Santa semana!

Lucia Sauerbronn
Quando eu era criança, aquela semana me enchia de terror. Os rituais começavam tranquilos no domingo de Ramos, mas a partir da noite de Quinta-Feira Santa eu vivia entre a ansiedade e o medo. Na igreja lotada, escolhia um lugar de onde pudesse identificar, entre os doze apóstolos, Judas Iscariotes, que trairia Cristo por 30 moedas de prata. E tentava compreender como o amigo seria capaz de entregar o Mestre que, numa atitude humilde, lavava os pés dos companheiros e dividia com eles o pão e o vinho. Por causa de Judas, Jesus seria preso, julgado e condenado à cruz. Quando a missa acabava, os altares se cobriam de luto, as toalhas brancas eram trocadas por roxas, não havia mais enfeites dourados, nem flores, nem velas.
O dia seguinte seria de penitência e reflexão. A Sexta-Feira da Paixão era sempre lenta e silenciosa. As pessoas falavam baixinho, rádio e televisão eram desligados. As crianças se alimentavam de peixe e vegetais, os adultos jejuavam. À noite, eu acompanhava minha tia à Procissão do Enterro. Vestidos de preto, os fiéis se arrastavam pelas ruas ao som triste de músicas fúnebres, seguindo o andor com Cristo morto, Nossa Senhora das Dores atrás. No meio da praça, arrepiada de medo, eu me escondia na sombra dos adultos, mas não desgrudava os olhos de Verônica, a mulher que enxugou o suor de Jesus. Enquanto cantava em latim sua melodia chorosa, ela desenrolava o tecido de linho em que o morto deixara estampada a expressão do seu sofrimento.
A procissão seguia em fila até a igreja, para beijar as chagas de Cristo. O que meus olhos viam não era uma imagem de gesso, mas um corpo sem vida, mãos e pés com as marcas profundas dos cravos que o prenderam à cruz. Na cabeça perfurada pela coroa de espinhos, as gotas de sangue me pareciam ainda úmidas. As cenas da Via Sacra, do julgamento à crucificação, invadiam meu sono e se multiplicavam em sonhos sombrios.
No Sábado de Aleluia eu era acordada pelo vozerio das crianças malhando o Judas. Vingar a morte de Jesus era uma diversão inocente e deixava o coração um pouco mais leve. Eu passava o resto do dia entretida com papel crepom e cartolina, preparando o cesto onde o coelhinho colocaria seus ovos.
Na madrugada de Páscoa, todos acompanhavam a procissão do Cristo ressuscitado. Ao som alegre do coro de vozes, as janelas iam se abrindo para a rua iluminada pelas lanternas de vela, protegidas da brisa gelada por cones de papel.
Os anjos, todos os anjos...
Depois da missa, a manhã de outono nascia mansa. Redondo e vermelho, o sol rompia de leve a linha do horizonte. Descíamos a rua de terra em bandos, tomados de uma alegria genuína pela beleza daquele instante. Eu abria o portão e martelava eufórica a campainha, acordando quem ainda dormia para procurar o que o coelhinho tinha deixado em nossos cestos. Eram sempre pequenos ovos de chocolate, algumas balas e confeitos coloridos, que faziam a nossa alegria. Talvez já fôssemos um pouco grandes para acreditar. Mas a festa era tão boa que nem mesmo meu irmão, adulto, fazia questão de ser sabido e estragar tudo contando que coelhos são mamíferos.
Devorávamos os doces durante a manhã, enquanto tios e primos iam chegando para o almoço que minha mãe preparava. A casa se enchia de vozes, as mulheres na cozinha, os homens cuidando das bebidas, os jovens ouvindo os hits da Jovem Guarda, as crianças brincando de bola ou amarelinha.
Tenho saudade desses momentos mágicos, numa época em que os dias eram mais lentos. Não havia tantos recursos nem tanta abundância. Ninguém sentia falta do que não precisava. As pessoas tinham desejos simples, princípios morais firmes e uma fé inabalável que as fazia ir adiante. Perdiam o emprego, tinham problemas financeiros, ficavam doentes. Mas as famílias eram solidárias: jamais abandonariam um dos seus sem apoio e ajuda. Talvez por isso não me lembro de alguém que tivesse depressão ou stress.
Quando meus filhos nasceram, fiz questão de manter a tradição. Traumatizada pelas minhas próprias lembranças, nunca tive coragem de levá-los para assistir aos rituais da Semana Santa. Mas, ano após ano, preparamos nossos cestos e os escondemos no jardim. Numa dessas manhãs, meu filho mais velho, atordoado de felicidade, jurou que tinha visto a pata do coelhinho da Páscoa fugindo de casa. Acho que ele viu mesmo. A imaginação às vezes é mais verdadeira que a realidade.


Crônica publicada na Coop Revista - Abril / 2.010

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