segunda-feira, 26 de abril de 2010

O menino da janela



O menino da janela

Lucia Sauerbronn
Abaixo a obsessão por limpeza! Chega de crianças limpinhas, casas super-higienizadas, escovas de dentes desinfetadas! Pesquisadores americanos acabam de descobrir que sujeira faz bem à saúde. Conviver com bactérias ajuda a prevenir inflamações, melhora o sistema imunológico e fortalece o organismo contra alergias.
Nossas mães já sabiam. Minha geração cresceu engatinhando no quintal, comendo tatu bolinha, caçando vagalume, cavocando a terra atrás de minhoca, mastigando bicho de goiaba, chupando manga com casca sem lavar. E lambendo o caldo que escorresse pelo braço encardido. Pisavam em pregos enferrujados, rasgavam sola do pé em caco de vidro, arranhavam braços e pernas em espinho e arame farpado, davam topada em pedra e perdiam a unha do pé, levavam mordida de cachorro, vespa, maribondo, abelha. Ninguém ia à farmácia – e muito menos ao hospital – por causa disso. Para não parar a brincadeira, bastava limpar a ferida com cuspe. Se a coisa fosse feia, merthiolate ardia, mas resolvia. A mãe soprava, dizendo: antes de casar, sara.
Cachorro e gato viviam no quintal. Eram livres para dar suas voltinhas. Traziam da rua bilhões de germes, micróbios e bactérias, mas ninguém se importava. Quando tomavam banho, era uma farra. Ficava quase impossível distinguir criança de animal naquela mistura de alegria molhada a mangueira e sabão em pedra. Às vezes nasciam uns filhotinhos. Cão e gato vira-latas eram gracinhas logo adotadas pela vizinhança.
Portão de casa não tinha tranca. Quando tinha, vivia quebrada, de modo que não havia fronteira entre o quintal e a rua. Depois da escola, ninguém tomava banho. Almoçava e ia brincar. Voltava na hora do jantar, sujo e enfarruscado. Nos dias de calor, as mães mandavam tomar banho no tanque. Nas tardes de tempestade, o chuveiro servia para aquecer o corpo gelado de correr na chuva, chafurdar nas poças d´água e soltar barquinhos de papel.
Em casa, bebia-se água do filtro de barro. Mas a melhor era da bica, onde a água escorria do cano envolto em musgo e bolor. Não menos contaminado do que as xícaras e pratinhos com que as meninas brincavam de comidinha. O bolo era feito de lama. Meninas gostavam de ir colher flores no campo. Apertar sementes de maria-sem-vergonha, fazer buquê de cravo-de-defunto, desfolhar margaridinhas recitando bem-me-quer, mal-me-quer, chupar o suco da flor de maravilha e morder o cabo da azedinha. Meninos também faziam excursões no mato. Iam atrás das mamonas, para guerra de semente. Quando cansavam, cortavam os talos para brincar de bolha de sabão, surrupiando do tanque o pacote de detergente em pó.
Éramos todos sadios, apesar das chupetas de caramelo queimado, quebra-queixo e puxa-puxa vendidos em tabuleiros de madeira encardida. Ainda não existia vigilância sanitária, mas não conheço criança que tenha morrido por chupar as balas de açúcar que vinham soltas nas caixinhas-surpresa misturadas com anéis de arame e
plástico colorido. Às vezes o doce caía no chão. Era só dar uma sopradinha para espantar a poeira e colocar logo na boca, dizendo que o que não mata, engorda.
Vez ou outra alguém tinha diarréia, curada com muita limonada. Se um de nós pegasse catapora, caxumba ou sarampo, os amigos iam fazer uma visitinha. Passavam a tarde jogando dominó, ludo, batalha naval. Voltavam para casa felizes e infectados. As mães incentivavam. Como não havia vacina, era melhor pegar logo o vírus, antes de ficar adulto.
Cuidado e caldo de galinha nunca matou ninguém. Mas até excesso de canja pode causar indigestão.
O menino da casa azul via o mundo através da janela. Era muito asseado. Roupas limpas e bem passadas, meias e sapatos engraxados, uma eterna blusa de lã. Não saía de casa para não apanhar friagem. Não tinha cão nem gato. Era alérgico. Não saía na rua porque era perigoso. As crianças do bairro desistiram de chamar para brincar. A mãe sempre dizia que ele estava doente. Acho que sofria de tristeza e solidão.
Publicado na Coop Revista - Janeiro / 2.010

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