terça-feira, 3 de agosto de 2010

Chá da tarde



Chá da tarde

Lucia Sauerbronn
A visita das tias era sempre um bom motivo. Mas podia ser uma vizinha, a comadre, a mãe de um de nossos colegas ou a amiga que encontrou na feira. Pela agitação de minha mãe, a gente logo percebia que a tarde ia fugir da rotina. Nem bem o almoço terminava, o barulho dos pratos era substituído pelo da batedeira, onde os ovos iam sendo misturados com açúcar, leite, farinha, fermento e suas mil variações: baunilha, raspas de limão, suco de laranja, chocolate, banana caramelizada, fubá com erva-doce. Antes que eu tivesse tempo de terminar de lamber os restos de massa da tigela, o cheiro de bolo assado já tomava conta da cozinha.
Com a precisão de quem sabe o que está fazendo, minha mãe tirava a toalha de algodão adamascado da gaveta, passava água nas xícaras e pratinhos de porcelana e punha no fogo a chaleira para o chá. Só então ela ia trocar de roupa, passar batom e esperar pela convidada, que, para nossa alegria, vinha sempre acompanhada dos filhos. Na meia hora seguinte, em volta da mesa, as mulheres falavam da educação das crianças, dos preços que andavam pela hora da morte, da costureira fantástica que tinham descoberto e trocavam receitas, enquanto nós dávamos fim ao bolo até as migalhas.
Com a chance de participar da conversa dos adultos, mesmo que como meros ouvintes, as crianças procuravam obedecer a todas as recomendações da mãe: comer de boca fechada, não avançar na comida, falar baixo e não rir na mesa, com medo de sermos obrigadas a ir brincar no quintal. O cuidado era inútil. Exatamente quando o assunto ficava mais interessante, alguém avisava que tinha gente descalça por perto. E não adiantava correr enfiar os sapatos. Aquele era o código para tirar as crianças da cozinha, sinal de que as confidências iam começar.
Enxotados, humilhados e frustrados, brincar era a última coisa que algum de nós pensava em fazer. Tudo o que a gente queria era descobrir que segredos se escondiam atrás da porta trancada a chave. Mesmo encostando o ouvido na madeira e pedindo silêncio, era impossível identificar qualquer sentido entre uma e outra palavra sussurada, mistério que só anos mais tarde consegui decifrar.
Aqueles encontros inocentes eram, na verdade, um álibi. Entre frases e risos abafados, xícaras de chá e pedaços de bolo, nossas mães espantavam seus medos e fantasmas. No começo dos anos 60, com a descoberta da pílula anticoncepcional, o mundo virava de cabeça para baixo. Mas tudo o que se relacionava a sexo era ainda um tabu tão grande que elas precisavam reunir coragem até para ir à farmácia comprar um pacote de absorventes. Com exceção da coluna A arte de ser mulher, que Carmem da Silva – primeira jornalista brasileira a abordar o feminismo – assinava na Revista Cláudia, o assunto não podia ser tratado nem mesmo com o padre. A cozinha era o único porto seguro onde as mulheres revelavam seus desejos e angústias. Evitar a gravidez, ter prazer no sexo, usar calças compridas: tudo isso não feria a religião, a moral e os bons costumes?
Com medo que seus segredos fossem parar na boca do povo, elas apelavam para uma tática. Contavam a própria história como se tivesse sido ouvida da boca da prima de uma vizinha da tia, que morava em outro estado. Isso tornava impossível apurar se o fato era real e deixava todas à vontade para dar palpites sobre o assunto.
O chá terminava por volta das cinco, quando a porta era finalmente reaberta. Com o rosto afogueado, aquelas mulheres, cujas revelações íntimas tornaram cúmplices e mais amigas do que antes, falavam alto tentando aparentar naturalidade. Agarrando os filhos pela mão, trocavam beijinhos rápidos de despedida. Era hora de voltar para casa, vestir o avental e preparar o jantar para a família, como se não levassem no peito um vulcão de emoções.
Hoje, quando vejo a intimidade dos casais escancarada nos programas de TV e o sexo vulgarizado, sinto saudade daquelas tardes secretas. Graças às nossas mães, não temos vergonha do próprio corpo e conquistamos o direito de assumir nossos desejos. As mulheres de hoje são modernas, desprovidas de tabus, preconceitos e se sentem à vontade para falar de seus relacionamentos até diante das crianças, sem chá nem bolo e com as portas escancaradas. Não nos falta liberdade. Talvez apenas um pouco de açúcar e de afeto.

Crônica publicada na Coop Revista - Outubro / 2.009

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