quinta-feira, 24 de junho de 2010

Aguenta, coração !



Aguenta, coração!

Lucia Sauerbronn


Vou levar lasanha. A Maura vai preparar a salada. A Marli se incumbiu da torta. A Evelina, da sobremesa, a Leda, dos aperitivos e a Cleni, dos biscoitinhos. Denise oferece a casa e as bebidas. Ainda falta definir o que fica por conta da Vera e da Maria, mas não é nenhum problema: ninguém ainda se manifestou sobre a pipoca e os pãezinhos. A Sueli e a Marly (com y) não sabem se vão aparecer ou juntar-se a outras turmas. Mas dona Isaura é presença obrigatória. Combinamos vestir verde, que é a cor da esperança. Mas quem for de amarelo também será bem recebido. Já a combinação azul e branco, por questões óbvias, foi definitivamente descartada.
Já fizemos também a lista de materiais indispensáveis para os dias de jogo: bandeira do Brasil para pendurar na janela, fitinha verde e amarela para a antena do carro, ioiô, apito e reco-reco. Só não vale papel picado, que faz uma sujeira danada dentro e fora de casa. Proibimos também a vuvuzela, aquela corneta irritante que os sul-africanos inventaram. Mas foi só para poupar nossos próprios ouvidos. É que, como todo bom brasileiro, nenhum fiscal do Psiu vai se importar com poluição sonora em dia de assistir a nossa seleção entrar em campo.
Estamos animados. De quatro em quatro anos repetimos esses encontros. São uma ótima desculpa para nos revermos sem pressa, numa tarde em que todos somos dispensados do trabalho por uma causa justíssima. Para dar conta dos compromissos, vamos ter de correr e terminar as tarefas do dia no curto período da manhã. E depois enfrentar trânsito pesado, ruas apinhadas, ônibus, metrô e táxis lotados para dar tempo de chegar antes do abrem-se as cortinas e comeeeça o espetáculo...
Os maridos vão logo se ajeitar nas cadeiras e sofás improvisados, corações e mentes ligados, olhos grudados na telinha. Só para provocar, prometemos contratar uma stripper para um showzinho especial para a ala masculina, como forma de relaxar a tensão daqueles cruciantes 90 minutos. Mas eles foram claros: juraram colocar para fora até dançarina do ventre que ouse se colocar entre seus olhos e a TV. A única coisa capaz de atrapalhar é a loura gelada acabar, torcida brasileira!
Da cozinha, nós, mulheres, estaremos atentas aos hummm, ohhhs e putz!... Se o locutor anunciar um gol seco, saberemos que é ponto para o adversário. Mas se o grito for de e que gooooooolllllll!!!!!!!, seguido de urros e explosão de fogos, iremos correndo comemorar com eles.
Enquanto os homens acompanham o pimmmmba na gorduchinha, estaremos livres para fofocar à vontade, trocar receitas e confidências, contar piadas e dizer todas as bobagens que quisermos sem juiz nem bandeirinha para dar cartão vermelho.
O teeeempo passa, e alguma de nós poderá lembrar de que é preciso dar um pulo na sala. Com a desculpa de conferir o placar e ver o que anda rolando no carooooço do abacate, talvez ela arrisque pedir emprestado o cartão de crédito do marido enquanto vêem as bandeeeeiras tremulando. O que, secretamente, todas vão querer fazer, depois de ficar sabendo aonde comprar aquele sapato maravilhoso da Marli e o endereço do cabeleireiro fantástico que deu um novo visual à Evelina.
Depois de tanta cerveja, os homens farão fila na porta do banheiro entre o primeiro e o segundo tempo. Vão também conferir os tira-teimas, comentar cada chute, drible, falta, pênalti e todos os lances dramáticos da peleja. E olhar, no álbum de figurinhas, a cara daquele jogador cuja mãe tem passado duvidoso, caso ele faça um golaço em cima do escrrrete canarinho, obrigando nossos pentacampeões a dar ripa na chulipa. Afinal, o que vale é bola na rede! Na rede dos outros.
Quando a gente ouvir fecham-se as cortinas e terrrrmina o espetáculo, vai bater aquela fome. Se o Brasil ganhar, ninguém vai se importar se o prato principal for bife de fígado. Se perder, não haverá bolo de chocolate capaz de tirar o amargo da boca.
É que futebol é uma caixinha de surpresas. Por enquanto, nossa turma programou assistir o Brasil enfrentar os times da Coreia do Norte, da Costa do Marfim e de Portugal. É que, para não atrair azar, ninguém se atreveu a planejar nenhum encontro para a segunda fase. Afinal, nem mesmo quem sonha ser hexacampeão deve contar com os ovos dentro da galinha. Mas, cá entre nós – Deus queira que seja bobagem – não dá lá para confiar muito naquela escalação do Dunga, que resolveu deixar de fora de pato a ganso. E a verdade é que andamos morrendo de medo de acabar comendo peru. Aí, torcida brasileira, não adiaaaaanta chorar...
Essa crônica é uma pequena homenagem a Fiori Gigliotti e Osmar Santos, locutores esportivos que emocionaram os brasileiros e sacudiram os estádios.

Crônica publicada na Coop Revista - Junho / 2.010

terça-feira, 8 de junho de 2010

Anormais são os outros



Anormais são os outros

Lucia Sauerbronn
Doida, doida eu não sou. Mas fico preocupada com essa mania que eu tenho de bater três vezes na madeira cada vez que penso numa coisa ruim. Também não passo debaixo de escada e, quando vejo gato preto, tenho logo de achar um branco. Outro dia, derrubei um pacote de sal. Não deixei ninguém limpar antes de jogar sobre ele um bocado de açúcar. Nunca largo bolsa no chão. Digo que é por higiene. Mentira. Na minha inconsciência, isso faz perder dinheiro. No dia do meu casamento, choveu. Fiquei feliz. Casar em dia de chuva dá sorte. Sei que é tudo bobagem. Mas, se puder evitar, não piso nas linhas da calçada, não deixo sapato virado nem dou lenço de presente. Juro que sou quase normal.
Anormais são os outros. Tenho uma amiga que guarda as roupas separadas por cor e os sapatos ordenados por estação do ano. Com foto na caixa e tudo. Diz que é para ficar mais fácil e não perder tempo. Eu não aguento essa mania que ela tem de manter tudo sempre arrumadinho. Justo ela, que fica maluca porque nunca deixo a louça para lavar no dia seguinte.
Outra chama todo mundo de querida, meu amor, meu bem, amiga, e depois sai por aí falando mal pelas costas. Odeio falsidade. Digo tudo o que penso na frente mesmo.
Não me importo de emprestar as coisas. Desde que não devolvam minha caneta Bic com tampa mordida ou um livro com frases sublinhadas. Por que não fazem como eu, que só rabisco quando estou no telefone? Fico tão entretida que já enfeitei de balõezinhos a borda do documento do carro do meu marido. Mas tenho certeza de que o guarda que pedir para ver vai achar que ficou bonitinho.
É preciso não perder tempo com coisas tão pequenas, quando outras bem mais irritantes acontecem todos os dias. Como o motorista que espera o farol abrir com o pé no acelerador, ou põe o som do carro no último volume como se todos tivessem obrigação de gostar da mesma música. Tem certas manias que mais parecem falta de educação. Ou carência de semancol. Meu vizinho adora cantar no banho. Às 5 da manhã! O pior é que ele reclama só porque gosto do som do meu sapato alto contra o assoalho. Haja paciência.
Impaciente mesmo fico quando uma pessoa começa a contar uma história e emenda em outra, sem dar tempo de contar a minha. Cansa. É muito pior do que eu contando piada, já que sempre esqueço o final. Chato mesmo é aquele amigo que tem mania de grandeza. Acha que tudo o que ele tem é sempre maior, mais bonito e mais gostoso. Não é verdade. O ego dele não pode ser maior que o meu.
Pior é o contrário, o que tem complexo de inferioridade. Gasto um tempão mostrando que, apesar de tudo, ele até que tem coisas positivas. Eu e essa mania de querer ajudar os outros a se sentirem bem...
Não funciona muito com quem tem mania de doença. Quando cruzo com um hipocondríaco não posso fugir alegando dor de barriga. Ele logo vai falar da sua úlcera, indicar o nome dos melhores especialistas, dos remédios de última geração e de uma dieta que, além de resolver o problema, fortalece o sistema imunológico. Entro no dr. Google e pesquiso os sintomas. Pelo sim, pelo não, marco uma consulta e dou um pulo na farmácia.
Estalar os dedos, bater com a caneta na mesa, ficar sentado balançando as pernas são manias nos outros que me incomodam. Também faço coisas que, aos olhos alheios, podem parecer estranhas, mas juro que não têm a menor importância. Que mal há em entrar em casa sempre com o pé direito?
Desde criança tenho algumas manias. Nada sério, mas me esforço em melhorar. Deixei, por exemplo, de comer primeiro toda a casquinha do sonho de valsa e depois mastigar o recheio sozinho. Também já não olho atrás da porta antes de deitar. Ainda não consigo dormir sem meus três travesseiros. Meu marido diz que eles ocupam muito lugar na cama. Ele não pode reclamar: nem durmo mais abraçada com meu ursinho!

Crônica publicada na Coop Revista - Novembro / 2.009