segunda-feira, 19 de julho de 2010

Amor é bom pra cachorro



Amor é bom pra cachorro

Lucia Sauerbronn
De pelo preto e amêndoa, cheirando a banho e de lacinho no topete, ela era a Milou em miniatura. Tremendo como coelhinho assustado, assim que me viu escalou meu casaco feito uma macaca e se aboletou dentro da gola. Atravessei a cidade dirigindo com aquela criaturinha enroscada no meu pescoço. Apesar do incômodo, eu estava feliz. Fazia um ano que a Milou tinha nos deixado. Foi muita sorte encontrar outra fêmea tão meiga e carinhosa para nos fazer companhia.
Escolhemos um nome pequenino como ela: Gigi. Na mesma tarde, teve uma grave crise de tosse. A veterinária elogiou os bons modos da mocinha, que tomou injeção sem reclamar. Exatamente como a Milou!
Ou quase. Na manhã seguinte, acordou recuperada. E com a pilha toda. Nosso primeiro passeio foi uma visita ao canteiro florido que guardava os restos mortais de nossa antiga companheira. Enquanto eu me ocupava das apresentações, Gigi fez cocô e mastigou as flores do canteiro. Perdoei a falta de respeito. Ela ainda era um bebê. Talvez quando crescesse, tomasse jeito. Ao invés de brigar, peguei a danada no colo e enchi de beijinhos.
Nada como um novo amor. Desde que não a gente não o compare com o antigo. Logo descobri que não se deve confiar num focinho bonito. O tempo iria mostrar que de Milou ela não tinha nada.
Para começar, odeia lacinhos. Arranca com as patas e come. Por sinal, come qualquer coisa, de ração a pé de mesa. Ontem, mordeu pimenta e saiu cuspindo pela casa. Já engoliu botão, miçanga de almofada e moeda de um centavo. Outro dia, arranquei de sua boca um caco de vidro. Por conta desse apetite voraz, de vez em quando tem dor de barriga e choraminga feito bebê. Só passa quando a coloco dentro da blusa e ela se acomoda colando a pele na minha. Também teve pulga e carrapato porque adora meter o focinho aonde não é chamada, quando a levo para passear. Se é que se pode dizer que eu a levo para passear. Gigi faz questão absoluta de escolher o caminho. Empaca feito burro se insisto em ir para outro lado.
Toda manhã me acorda com uma crise de tosse. Já está curada, mas tosse para chamar atenção. Ando pela casa com a pestinha agarrada à calça do pijama. Enquanto tomo banho, ela mastiga meu chinelo. Eu me visto e ela briga com a própria imagem no espelho, que já está todo arranhado. Não tenho mais tênis com cadarços, nem abajur que funcione, pois ela faz os fios de chiclete. Cada vez que quero mudar o canal da TV preciso levantar do sofá e ir até o aparelho. Ela roeu o controle remoto. E não adianta brigar. Na língua dela, não quer dizer sim. E não está nem aí para bronca e cara feia.
O que ela detesta mesmo é ficar sozinha. Quando saio para trabalhar, se enfia porta afora, querendo ir junto. A Conceição, que trabalha lá em casa, tem de ligar o rádio para convencê-la a ficar. Então, ela se ajeita no meio da pilha de roupas para lavar e fica ouvindo música. Se o dia está frio, procura um raiozinho de sol e deita de barriga para cima para se aquecer.
Ela tem uma vantagem sobre a Milou que, quando ficava sozinha, se vingava fazendo xixi no tapete da sala. Experiente, espalhei fraldões para cachorro em cada cômodo. Está certo que ela cheira a beirada da peça, erra a mira e faz fora, molhando o assoalho. Mas tenho fé em Deus que um dia ela acerta. Quem sabe, quando crescer um pouco...
Dois meses e muitos sapatos carcomidos depois, Gigi ainda não sossegou. Tenho me esforçado em tentar domar seus ímpetos adolescentes. Mas quem é que consegue controlar tanta energia? Quando volto para casa, fica tão feliz que pula como uma cabrita. Não é uma vantagem? Em vez de cão tenho um zoológico inteiro.
Gosta de dançar sobre as patas traseiras pedindo colo. Uma vez no colo, me lambuza de beijos e aproveita para arrancar meu brinco. Se a devolvo para o chão, vai buscar seus brinquedos. A bolinha de tênis está esfarrapada. O porquinho está em pedaços. A galinha de borracha ela chacoalha tanto que qualquer dia vai descolar o cérebro. Parece uma maluquinha percorrendo a casa toda, da sala para o quarto, do banheiro para a lavanderia, sem parar nenhum segundo. Enquanto preparo o jantar, ela corre atrás do rabo e resmunga, pedindo pãozinho. Só então vai se aboletar no sofá. Aí a brincadeira é mordiscar minha mão, que já está cheia de furinhos por causa dos seus dentes afiados. Demora para cansar. Mas, quando adormece, parece um anjinho.
Assim quieta, não dá para saber se a bichinha é de verdade ou de pelúcia. É tão pequenininha! Já está uma mocinha, mas acho que nunca vai tomar jeito. Sei que a cupa é mesmo minha. Ela jamais será uma lady como a Milou, que eduquei como filha. É que, com a Gigi, não resisto me comportar como avó.

Crônica publicada na Coop Revista - Julho / 2.010

terça-feira, 6 de julho de 2010

Ora, abóboras!



Ora, abóboras!
Lucia Sauerbronn


Abóbora faz bem à saúde. É rica em fibras, zinco, ferro e quase todo o alfabeto das vitaminas. Antioxidante, reduz o risco de câncer e doenças cardíacas, derrames e problemas oculares. Controla o colesterol e ajuda o sistema imunológico. Mas juro que não foi em nada disso que pensei quando levei o punhado de sementes para casa. Eu me encantei mesmo foi com a foto da embalagem, uma travessa repleta de abóboras listradas e lisas, de cores, texturas e formatos diferentes.
Nasci e me criei na cidade. Mas tenho certa nostalgia do campo, o que me levou a ter uma casinha no interior. É lá que me escondo nos fins de semana, entre meus livros e panelas, duas grandes paixões. Não tenho muita afinidade com a terra, mas mantenho uns vasinhos de ervas. Cultivo manjericão, louro, sálvia, alecrim, orégano, hortelã, pimentas de vários tipos. Com um pouco de dedicação e alguma sorte, eu poderia também colher abóboras.
Naquele sábado, acordei cheia de disposição. Bermuda, camiseta, botas, chapéu, luvas e filtro solar, estava preparada para viver as delícias da vida agrícola. Arremessei a enxada na terra e puxei um torrão. Uma dezena de minhocas saltaram para fora, se contorcendo de raiva (ou de dor?). Que nojo! Cortadas ao meio, algumas continuavam a se mexer. Acho que essa é uma das razões pelas quais meninas não gostam de pescarias. Engoli em seco e pensei que, afinal, minhocas significavam que a terra era boa para o plantio. Mesmo assim, não quis arriscar. Virei o saco de adubo de galinha e misturei, tapando o nariz com a gola da camiseta. Desfiz os grumos com as mãos, rezando pela alma do inventor das luvas de borracha.
O sol estava de rachar. O suor escorria pelas bordas do chapéu. O filtro solar derretido entrava pelos olhos. Os pés cozinhavam dentro da bota plástica. Os cabelos grudavam na cabeça. Arranquei as luvas, joguei longe o chapéu, descalcei as botas. Pisei num formigueiro. Eu tinha sede. Muita sede, mas nenhuma coragem de segurar um copo d´água. Tomei da mangueira mesmo, apesar de morna e ruim. Aproveitei e lavei o rosto. E a cabeça. Finalmente, a terra estava pronta para receber as sementes. Agora era regar e esperar. Lambuzada de creme contra queimaduras de sol, olhos inflamados de alergia ao protetor, pernas coçando pelas picadas de formiga, unhas destruídas, cabelos ressecados e dores nas costas lancinantes, naquela noite sonhei com abóboras.
No fim de semana seguinte, comemorei os primeiros brotinhos. No segundo, os ramos já se espalhavam pelo canteiro. No terceiro, grossos talos se enroscavam na cerca, cheios de botões de flores amarelas e brancas. Eu estava orgulhosa da minha roça.
Passei o mês pesquisando a abóbora. Descobri que não é legume, mas fruta, assim como o tomate, e muito versátil. Vai bem em saladas, pães, tortas, doces, refogados. Selecionei as melhores receitas e fiz a lista de convidados para o banquete que prepararia com o resultado do meu trabalho.
Acompanhei o processo das flores se transformando em frutos. Cresciam, engordavam, amadureciam. A chuva e o sol na medida certa, o amanhecer o e anoitecer de um dia depois do outro pareciam lentos demais para minha ansiedade. No último fim de semana, adiantei a viagem e cheguei na sexta, com a noite já alta. Munida de lanterna, fui verificar a plantação. Lá estavam elas! Umas eram redondas como melões, outras, de gomos grossos e firmes, pareciam mexericas descascadas. A maior parte lembrava uma enorme pera. E a textura das cascas? Lisas, aveludadas, enrugadas, grosseiras ao toque. Amarelo, branco, verde, laranja, as cores formavam desenhos e pintinhas. Como eram lindas as minhas aboborazinhas!
Acordei cedo e chamei o pessoal para a festança. Descrevi o cardápio: salada de abóbora, pão de abóbora, torta de abóbora, escondidinho de carne seca e abóbora. De sobremesa, doce de abóbora!
Com uma tesoura de jardim, fui cortando os frutos. Precisei de ajuda para carregar a colheita. A pia da cozinha se encheu de cores. E de larvas! Bichos gosmentos escapavam por minúsculos orifícios perfurados nas cascas. Brancas, verdes, amarelas, laranjas, as larvas explodiam aos milhares conforme a faca ia cortando a polpa carnuda. Os convidados chegaram a tempo de tirar umas fotos, como a que ilustra essa crônica. Depois, comemos macarrão.
Mais de trinta abóboras foram para o lixo. Apenas doze ficaram ilesas à praga. Descobri que não eram abóboras de verdade, mas cabaças, impróprias para a alimentação. Até as larvas sabem disso. Cabaças são usadas com fins decorativos. Servem para fazer chocalho, peneira, boneca, copo e até escultura.
Meus pés de abóbora morreram. Mas as cabaças continuam proliferando no quintal. Nas próximas semanas, renderão quase uma centena de frutos. É o fim da minha carreira de produtora de alimentos. Em compensação, me inscrevi num curso de artesanato.

Crônica publicada na Coop Revista - Dezembro / 2.009