terça-feira, 25 de maio de 2010

O virundum



O virundum
Lucia Sauerbronn
O nome do hino não é o virundum. O herói nunca foi cobrado, nem o bravo tem turbante. Os raios não fugiram. E o Lázaro estalado não tenta ninguém.
Pode parecer piada, mas há quem diga umas barbaridades dessas durante a execução do Hino Nacional. Se até lendo a letra você também não entende bulhufas do que dizem seus versos, não está sozinho. Já vi muita gente importante, com a mão no peito, mexer a boca e fingir cantar, enrolando a letra. Principalmente quando aparecem em close na TV. Imagine as bobagens que sairiam se colocassem um microfone diante deles.
É que, de ouvido, nosso hino parece ter sido escrito em javanês, e muitos apenas repetem os sons que as palavras formam sem ter a menor ideia do que estão cantando. Parece falta de respeito, mas é compreensível. A melodia foi composta pelo maestro Francisco Manoel da Silva há quase dois séculos, em 1822, ano da Independência. Naquela época, começava assim: “Os bronzes da tirania já no Brasil não rouquejam. Os monstros que a escravizam já entre nós não vicejam...”.
Em 1909, os políticos acharam que a letra era difícil e decidiram promover um concurso para escolher versos que representassem melhor o Brasil. O poeta Joaquim Osório Duque Estrada faturou o prêmio.
Ele escreveu um belo poema, que conta direitinho como Dom Pedro I mandou para a corte portuguesa o recado de que os brasileiros já eram donos do próprio nariz. Ainda descreve as belezas naturais da nossa terra e enaltece as características pacíficas, mas não submissas, de seu povo.
Só que agora, cem anos depois, o jeito de o brasileiro se expressar ficou tão mais simples e direto que já chegaram até a pensar em mudar de novo a letra. Não concordo. Mas acho uma pena que nem todos compreendam o sentido dos seus versos.
Por isso, me atrevi a preparar uma livre tradução da letra oficial. O Duque Estrada me perdoe:
Às margens do riacho do Ipiranga, ergue-se a espada e um grito anuncia que, a partir daquele instante, o Brasil deixa de pertencer ao reino de Portugal e torna-se independente. Seu povo não tem medo de lutar pela liberdade e está disposto a morrer por seu país belo, forte e tão grande quanto o futuro que o espera. Cheios de amor e esperança, os brasileiros amam sua pátria generosa.
As estrelas do Cruzeiro do Sul brilham nas noites claras no imenso céu do Brasil, um país grande, que se destaca entre todos os outros da América. Uma terra de muitas praias, solo rico, campos férteis e florestas repletas de plantas e animais de incontáveis espécies. Os que nasceram e vivem no Brasil amam mais e são mais amados. As estrelas da bandeira brasileira simbolizam o amor. Suas cores, o verde e o amarelo, representam um futuro cheio de paz e o passado de glórias. Mas, se for preciso ir à guerra, nenhum brasileiro deixará de lutar, porque quem ama a pátria não tem medo da morte. Entre todos os países, o mais amado é o Brasil. Uma pátria generosa, amada por todos os brasileiros.
Não é o hino mais bonito do mundo? E fica mais belo ainda quando os brasileiros de norte a sul se unem em coro nas vitórias dos atletas canarinho em campeonatos mundiais, seja no futebol, na fórmula 1 ou nas Olimpíadas. Nossa alma brasileira se enche de uma fé inabalável no futuro. É de arrepiar.
Agora, que vamos ter Copa do Mundo, o país inteiro vai cantar, com fé e orgulho, a terra em que nasceu. Procure na internet a versão correta e decore a música direitinho. Se precisar, fique com a letra na mão, para não confundir a primeira parte que diz Brasil, um sonho intenso, um raio vívido com a segunda que começa com Brasil, de amor eterno seja símbolo...
Quando você ouvir os primeiros acordes da música composta por Francisco Manuel da Silva, coloque a mão direita sobre o coração e torça pela sua Pátria amada. Feche os olhos e imagine cada cena que as estrofes exprimem. Pode chorar à vontade. Se a gente prestar atenção no hino, sem falsa modéstia, ele é o retrato do Brasil e dos brasileiros.
Crônica publicada na Coop Revista - Maio / 2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Santa Semana!


Santa semana!

Lucia Sauerbronn
Quando eu era criança, aquela semana me enchia de terror. Os rituais começavam tranquilos no domingo de Ramos, mas a partir da noite de Quinta-Feira Santa eu vivia entre a ansiedade e o medo. Na igreja lotada, escolhia um lugar de onde pudesse identificar, entre os doze apóstolos, Judas Iscariotes, que trairia Cristo por 30 moedas de prata. E tentava compreender como o amigo seria capaz de entregar o Mestre que, numa atitude humilde, lavava os pés dos companheiros e dividia com eles o pão e o vinho. Por causa de Judas, Jesus seria preso, julgado e condenado à cruz. Quando a missa acabava, os altares se cobriam de luto, as toalhas brancas eram trocadas por roxas, não havia mais enfeites dourados, nem flores, nem velas.
O dia seguinte seria de penitência e reflexão. A Sexta-Feira da Paixão era sempre lenta e silenciosa. As pessoas falavam baixinho, rádio e televisão eram desligados. As crianças se alimentavam de peixe e vegetais, os adultos jejuavam. À noite, eu acompanhava minha tia à Procissão do Enterro. Vestidos de preto, os fiéis se arrastavam pelas ruas ao som triste de músicas fúnebres, seguindo o andor com Cristo morto, Nossa Senhora das Dores atrás. No meio da praça, arrepiada de medo, eu me escondia na sombra dos adultos, mas não desgrudava os olhos de Verônica, a mulher que enxugou o suor de Jesus. Enquanto cantava em latim sua melodia chorosa, ela desenrolava o tecido de linho em que o morto deixara estampada a expressão do seu sofrimento.
A procissão seguia em fila até a igreja, para beijar as chagas de Cristo. O que meus olhos viam não era uma imagem de gesso, mas um corpo sem vida, mãos e pés com as marcas profundas dos cravos que o prenderam à cruz. Na cabeça perfurada pela coroa de espinhos, as gotas de sangue me pareciam ainda úmidas. As cenas da Via Sacra, do julgamento à crucificação, invadiam meu sono e se multiplicavam em sonhos sombrios.
No Sábado de Aleluia eu era acordada pelo vozerio das crianças malhando o Judas. Vingar a morte de Jesus era uma diversão inocente e deixava o coração um pouco mais leve. Eu passava o resto do dia entretida com papel crepom e cartolina, preparando o cesto onde o coelhinho colocaria seus ovos.
Na madrugada de Páscoa, todos acompanhavam a procissão do Cristo ressuscitado. Ao som alegre do coro de vozes, as janelas iam se abrindo para a rua iluminada pelas lanternas de vela, protegidas da brisa gelada por cones de papel.
Os anjos, todos os anjos...
Depois da missa, a manhã de outono nascia mansa. Redondo e vermelho, o sol rompia de leve a linha do horizonte. Descíamos a rua de terra em bandos, tomados de uma alegria genuína pela beleza daquele instante. Eu abria o portão e martelava eufórica a campainha, acordando quem ainda dormia para procurar o que o coelhinho tinha deixado em nossos cestos. Eram sempre pequenos ovos de chocolate, algumas balas e confeitos coloridos, que faziam a nossa alegria. Talvez já fôssemos um pouco grandes para acreditar. Mas a festa era tão boa que nem mesmo meu irmão, adulto, fazia questão de ser sabido e estragar tudo contando que coelhos são mamíferos.
Devorávamos os doces durante a manhã, enquanto tios e primos iam chegando para o almoço que minha mãe preparava. A casa se enchia de vozes, as mulheres na cozinha, os homens cuidando das bebidas, os jovens ouvindo os hits da Jovem Guarda, as crianças brincando de bola ou amarelinha.
Tenho saudade desses momentos mágicos, numa época em que os dias eram mais lentos. Não havia tantos recursos nem tanta abundância. Ninguém sentia falta do que não precisava. As pessoas tinham desejos simples, princípios morais firmes e uma fé inabalável que as fazia ir adiante. Perdiam o emprego, tinham problemas financeiros, ficavam doentes. Mas as famílias eram solidárias: jamais abandonariam um dos seus sem apoio e ajuda. Talvez por isso não me lembro de alguém que tivesse depressão ou stress.
Quando meus filhos nasceram, fiz questão de manter a tradição. Traumatizada pelas minhas próprias lembranças, nunca tive coragem de levá-los para assistir aos rituais da Semana Santa. Mas, ano após ano, preparamos nossos cestos e os escondemos no jardim. Numa dessas manhãs, meu filho mais velho, atordoado de felicidade, jurou que tinha visto a pata do coelhinho da Páscoa fugindo de casa. Acho que ele viu mesmo. A imaginação às vezes é mais verdadeira que a realidade.


Crônica publicada na Coop Revista - Abril / 2.010